sábado, 12 de março de 2016

A máquina de fazer espanhóis - Valter Hugo Mãe

Antônio Jorge da Silva, senhor silva, é um octogenário, viúvo depois de quase 50 anos de casamento com Laura, tem dois filhos. Quatro meses depois do título de viuvez, a filha Elisa o transfere para um asilo, o Lar da Feliz Idade, onde conhece outra vida, nova, mas não recebida com prazer. Além da saudade da esposa, conviver com outras pessoas, ele, que nunca foi afeito a amizades, apenas a esposa e os filhos formavam seu universo de barbeiro em Lisboa, vivido na juventude em plena época de Salazar.
O envelhecer mostrado pelas vestes de quem não se enxerga com 84 anos, em plena capacidade de raciocínio (quer dizer, na maioria das vezes), a percepção de ser internado numa instituição de idosos, aproximar-se de doenças, a esperar pela morte.
Nos primeiros 10% do livro, quando Laura, a esposa do senhor silva, morre, já percebemos que o livro nos arrebata, desperta sentimentos fortes de ruptura, solidão, depois a outra realidade de nova morada, duas mudanças radicais.
Além de senhor silva, há esteves, um fictício personagem de um poema de Fernando Pessoa, pereira, dona marta, silva da europa, américo, o espanhol que gostaria de ser português, figuras do asilo que compõe um quadro de decadência, de amizade, de descobertas. Letras minúsculas nos nomes próprios,  característica do autor.
Cada um dos personagens tem sua caricatura perfeita, construído com primor. Como o médico da instituição: "(...) fiquei sentado com o doutor bernardo, posto diante de mim como um anjinho lavado acenando-me com nuvens de algodão doce e pássaros", ou os olhos reluzentes de Anísio e sua namorada
Um livro maravilhoso. Emocionante.

"Com a morte, também o amor devia acabar, acto contínuo, o nosso coração devia esvaziar-se de qualquer sentimento que até ali nutrira pela pessoa que deixou de existir, pensamos, existe ainda, está dentro de nós, ilusão que criamos para que se torne todavia mais humilhante a perda e para que nos abata de uma vez por todas com piedade, e não é compreensível que assim aconteça, com a morte, tudo o que respeita a quem morreu devia ser erradicado, para que aos vivos o fardo não se torne desumano, esse é o limite, a desumanidade de se perder quem não se pode perder"


"O problema com o ser-se velho é o de julgarem que ainda devemos aprender coisas quando, na verdade, estamos a desaprendê-las, e faz todo sentido que assim seja para que nos afundemos inconscientemente na iminência do desaparecimento, a inconsciência apaga as dores, claro, e apaga as alegrias, mas já não são muitas as alegrias e no resultado da conta é bem visto que a cabeça dos velhos se destitua da razão para que, tão de frente à morte, não entremos em pânico, a repreensão contínua passa por essa esperança imbecil de que amanhã estejamos mais espertos quando, pelas leis mais definidoras da vida, a esperança que se deposita na criança tem que ser inversa à que se nos dirige, e quando eu fico bloqueado, tão irritado com isso sem dúvida, não é por estar imaturo a esperar vir a ser melhor, é por estar maduro de mais e ir como que apodrecendo, igual aos frutos"

"O lar da feliz idade, assim se chama o matadouro para onde fui metido, que irônico nome e só então me ocupava o pensamento"

"(...) ser religioso é desenvolver uma mariquice no espírito, um medo pelo que não se vê, como ter medo do escuro porque o bicho papão pode estar à espreita para nos puxar os cabelos, esperar por deus é como esperar pelo peter pan e querer que traga a fada sininho com a sua mini-saia erótica tão desadequada à ingenuidade das crianças, o ser humano é só carne e osso e uma tremenda vontade de complicar as coisas, eu aprendi que aqueles crentes se esfolavam uns aos outros de tanto preconceito e estigmatização."

"(...)a velhice, pensei, é o cérebro que alui corpo abaixo, até ficar a atrapalhar o funcionamento dos outros órgãos, imaginem que o cérebro cai corpo dentro e depois se fixa, mal fixo, ali em cima do coração, escorregando lentamente, até cair para cima dos pulmões, mal fixo, e lentamente cair para onde está o intestino, e pelo caminho, que porcaria de caminho aquele, que ideias, haveria de fazer com que o coração hesitasse na batida e se esquecesse de amar, como faria com que os pulmões aceitassem parar de voar seduzidos pela matéria e o fulgor da terra"

"As mulheres portuguesas é quefaziam os espanhóis. Abriam as pernas e pariam-nos a todos, estes espanhóis enjeitados, arrependidos, com vontade de voltar a casa, terem melhor casa, melhores salários, uma dignidade à grande e não esta coisa quase a tombar ao mar, como a parede, a suicidar-se, cheias de saudades, remorsos, queixas e tristezas frustrantes."

"Que filho da mãe de erro este de proclamarem soberania nos arremedos de uma península."

"Deus é uma cobiça que temos dentro de nós. É um modo de querermos tudo, de não nos bastarmos com o que é garantido e já tão abundante, deus é uma inveja pelo que imaginamos, como se não fosse suficiente tanto quanto se nos põe diante durante a vida."



"(...) os homens acreditam em deus porque não são capazes de acreditar uns nos outros, e quanto mais assim for, quanto menos acreditarmos uns nos outros, mas solicitamos o policiamento, e se o policiamento divino entra em crise, porque se libertam e o jugo glutão da igreja já não funciona, é preciso que se solicite do estado esse policiamento, que medo o de voltarmos ao tempo de uma polícia de costumes e convicções, que medo se voltamos a temer os vizinhos e os vizinhos nos puderem entregar por ideias contrárias, que medo se nos entra outro filho-da-puta no poder, a censurar tudo quanto se diga a mandar que pensemos como pensa e que façamos como diz que faz."

"Depois confessei-lhe, precisava deste resto de solidão para aprender sobre este resto de companhia, este resto de vida, Américo, que eu julguei já ser um excesso."