terça-feira, 29 de setembro de 2015

O filho de mil homens - Valter Hugo Mãe

aCrisóstomo, 40 anos, tem o maior desejo na vida o de ser pai; Camilo é um filho perdido depois da morte da mãe no parto, criado por Alfredo, que o considera  neto; Isaura sonha com um amor, família e perde-se em meios seus próprios ideias, torna-se desiludida; Antonino, filho de Matilde, longe do modelo que a mãe desejaria que fosse, busca formas de ser aceito por ela e encaixar-se numa família... essas e outras são estórias se se entrelaçam, formando um romance poético e com muita sensibilidade, maravilhosamente bem escrito. Solidão, família, preconceito, amor, desilusão estão presentes no livro.
Frases e trechos:
"A esperança era uma coisa muda e feita para ser um pouco secreta."
"Quem tem menos medo de sofrer, tem maiores possibilidades de ser feliz."
"A casa ficou estúpida. Com arranjos aqui e ali, até umas flores silvestres na cómoda, a casa embonecara-se como uma menina ingénua. Uma casa menina. Uma casa ingénua que não aprendera ainda quem a habitava, a leviandade afetiva de quem a habitava, o quanto podiam os seus habitantes errar e precipitar-se como suicidas. A casa assim ficou, sem que lhe mexessem, deixada a murchar sozinha, sem importância. A Maria, como a casa, era olhos, nenhuma boca, nada, tão alheia. O xaile preto tinha uma
flor, talvez uma rosa. Sem importância."
"Tão estranho que depois de tanto tempo e tanta mágoa pudesse pensar no amor. Amanhecera vazia, sem ninguém dentro de si mesma, e foi como se encheu com a ideia de afinal ser impossível esquecer o amor. Porque o amor era espera e ela, sem mais nada,  apenas esperava."
"O passado é uma herança de que não se pode abdicar, disse o doutor. O velho Alfredo encolhia os ombros. Não podia desfazer a história do menino, não podia suprimir a desgraça da anã ou a sua atabalhoada forma de se compensar do amor. Ninguém poderia biografar o Camilo novamente. Novo era só o presente e o que se pensasse do futuro."
"(...) era uma pena a falta de leitura não se converter numa doença, algo como um mal que pusesse os preguiçosos a morrer. Imaginava que um não leitor ia ao médico e o médico o observava e dizia: você tem o colesterol a matá-lo, se continuar assim não se salva. E o médico perguntava: tem abusado dos fritos, dos ovos, você tem lido o suficiente. O paciente respondia: não, senhor doutor, há quase um ano que não leio um livro, não gosto muito e dá-me preguiça. Então, o médico acrescentava: ah, fique pois sabendo que você ou lê urgentemente um bom romance, ou então vemo-nos no seu funeral dentro de poucas semanas. O caixão fechava-se como um livro."
"Os barcos não podiam vir assim tão rente às praias para que as moças os ouvissem. Sentia-se lisonjeada com o interesse do pescador, mas era uma lisonja de recurso, como por desespero. A lisonja das prostitutas. Das que se contentavam com o interesse perverso dos homens porque não conseguiam um interesse limpo, amoroso, com decoro. A lisonja das infelizes."
"Não adianta sonhar com o que é feito apenas de fantasia e querer aspirar ao impossível. A felicidade é a aceitação do que se é e se pode ser."
"Que raio acontece depois às crianças, que crescem para ser tudo ao contrário do que os pais lhes disseram e tanto lhes sonharam. Que raio se há-de passar na vida das pessoas que as faz perder o controle sobre os mais novos, tão permeáveis quanto casmurros a crescerem à revelia do que os pais ensinam, querem, mandam. Deviam crescer exatamente como lhes fosse dito. A gostarem do que aprenderam a gostar quando pequenos, a repudiarem o que lhes foi dito para repudiar, sobretudo abdicando de envergonhar a família tornando-se o oposto das coisas boas, das boas educações que as famílias lhes dão. Que raio acontece às crianças depois."
"Os felizes, pensava ele, eram quase os felizes, agora eles, na sua vez. O resto, apenas problemas, coisas práticas que tinham de resolver, mas sem chispar dos olhos e sem ferrar por lados diversos. A vida podia ser mais simples."
"Amar uma pessoa é o destino do mundo."
"Para onde eu vou, vai-me o coração também, que ainda não arranjei modo de o largar pelo chão."
"(...) Disse-lhe que era um rapaz de pouco valor, mas que estava a habituar-se a valer pouco para não esperar nada da vida. Se não esperarmos nada, dizia ele, tudo quanto existe é já abundância."
"O Crisóstomo então levantou-se, atravessou o quarto, saiu, foi ver o Camilo deitado e beijá-lo para dormir e disse-lhe: nunca limites o amor, filho, nunca por preconceito algum limites o amor. O miúdo perguntou: porque dizes isso, pai. O pescador respondeu: porque é o único modo de também tu, um dia, te sentires o dobro do que és."
"Queriam certamente que a terra respondesse, que aberta a cova funda se ouvisse por eco uma voz que garantisse alguma coisa acerca do lado de lá. Mas, esburacado todo o cemitério, tanta gente ali enterrada, nunca resposta alguma era devolvida, nem para susto nem para sossego dos que ficavam."
"Aos quarenta anos, o Crisóstomo deitou-se sobre a areia e inventou que estava ligado a todas as pequenas e grandes coisas do mundo, como se lhes pertencesse por igual e cada pedaço de matéria fosse uma extensão longínqua de si. Ia do centro do seu peito aos pinheiros ao fundo, ia do centro do seu peito à rocha despontando no meio do mar, ia do centro do seu peito até ao telhado de cada casa. Se pensasse em mexer um dedo, pensando maior como se fosse também muito maior, tinha a sensação de estremecer os ramos todos dos pinheiros. Se pensasse em bulir os pés, pensando maior como se fosse também muito maior, agitaria o rochedo no meio do mar. Se pensasse em abanar com a cabeça, pensando maior como se fosse também muito maior, poderia levantar os telhados às casas como chapéus num cumprimento qualquer. O Crisóstomo, fantasiando como sabia, sabia tudo."