segunda-feira, 28 de setembro de 2015

A Peste - Albert Camus

O livro se passa na cidade de Oran, Argélia, em "194..". O narrador é oculto durante todo o livro, revelando-se apenas ao final, pois "se o acaso não o tivesse posto em condições de recolher um certo número de depoimentos e se a força das circunstâncias não o tivessem envolvido em tudo o que pretende utilizar", age como historiador, baseado em seu testemunho, no dos outros e em "textos que caíram em suas mãos".
O relato tem início em 16 de abril e segue-se até início no outro ano. O médico Bernard Rieux encontra um rato morto na porta de seu apartamento e, durante os próximos dias, toda a população de Oran vê ratos pelas ruas, em casa, saindo de bueiros, para morrerem, inchados, doentes.
Logo o primeiro caso de peste é encontrado, porém não diagnosticado como epidemia, só depois, com o aparecimento de novos doentes e mortes, 11 óbitos em 48 horas.
Quando as autoridades, com o auxílio de Rieux e Richard, outro médico, verificam se tratar da peste bubônica, isolam a cidade, fecham os postos, as linhas férreas, ninguém podendo entrar ou sair de Oran.
A epidemia tem seu aspecto particular para uns indivíduos e traz sentimentos e atitudes também comuns aos "concidadãos": para Rambert, um jornalista que estava de passagem pela cidade, significa a separação de sua nova vida, sua amante; para Joseph Grant, empregado da Câmara, quantificar os casos diários, acompanhar estatisticamente o aumento ou diminuição da epidemia; Cottard, que, antes da doença, tentara enforcar-se em seu apartamento, a epidemia é oportuna, pois não há leis, as autoridades policiais arquivam os casos em andamento... para a população, é o cerceamento da liberdade, o medo constante da doença, as mortes, dores, o racionamento da comida, o aumento dos preços dos alimentos, quando os mais ricos tem seu abastecimento garantido, enquanto os mais pobres sofrem mais privações.
Sobre Tarrou, um hóspede do hotel local, que também ficou preso por causa da peste, pouco se sabia, apenas que estava na cidade há pouco tempo, era um observador da vida local, mas que abraça a causa para o combate à epidemia, junto com Rieux e outros, levando consigo Rambert, que tentava fugir de Oran a qualquer preço. Doentes em abrigos, escolas, prédios públicos transformados em hospitais ou em isolamento para os que tiveram parentes mortos, pessoas que vagueiam sem destino, descrentes, centenas de mortes diariamente.
No livro, temos a presença da liberdade, da separação, da perda ininterrupta de parentes e amigos, na invasão de uma doença que não se tem a cura imediata, na política.
Pode-se dizer, ao terminar a leitura, que realmente, o que lemos sobre ele, quando dizem que é uma alegoria à Segunda Grande Guerra, à invasão alemã, à miséria da época, é fato. A genialidade do livro é impressionante. Não se consegue parar de lê-lo, até chegar à última página.
Boa leitura!
"Uma forma cômoda de travar conhecimento com uma cidade é procurar saber como se trabalha, como se ama e como se morre. Na nossa pequena cidade, talvez por efeito do clima, tudo se faz ao mesmo tempo, com o mesmo ar frenético e distante. Quer dizer que as pessoas se entediam e se dedicam a criar hábitos.
Nossos concidadãos trabalham muito, mas apenas para enriquecer. Interessamse(sic)principalmente pelo comércio e ocupam-se, em primeiro lugar, conforme sua própria expressão, em fazer negócios."
"A imprensa, tão indiscreta no caso dos ratos, já não mencionava nada. É que os ratos morrem na rua e os homens, em casa. E os jornais só se ocupam da rua. Mas a prefeitura e a municipalidade começavam a se questionar. Enquanto cada médico não tinha tido conhecimento de mais de dois ou três casos, ninguém pensara em se mexer. Mas, em resumo, bastou que alguém pensasse em fazer a soma, e a soma era alarmante."
"(...) Uma das consequências mais importantes do fechamento das portas foi a súbita separação em que foram colocados seres que para isso não estavam preparados. Mães e filhos, esposos, amantes que tinham julgado proceder, alguns dias antes, a uma separação temporária, que se tinham beijado na plataforma da nossa estação, com duas ou três recomendações, certos de se reverem dentro de alguns dias ou algumas semanas, mergulhados na estúpida
confiança humana, momentaneamente distraídos de suas ocupações habituais por essa partida, viram-se, de repente, irremediavelmente afastados, impedidos de se encontrarem ou de se comunicarem. Sim, porque as portas  tinham sido fechadas algumas horas antes de ser publicado o decreto do prefeito e, naturalmente, era impossível levar em conta os casos particulares. Pode dizer-se que essa invasão brutal da doença teve, como primeiro efeito, o de obrigar nossos concidadãos a agir como se não tivessem sentimentos individuais."
"[a] separação brutal e prolongada os capacitara a afirmar que não conseguiam viver afastados um do outro e que, diante dessa verdade subitamente revelada, a peste era coisa sem importância. (...) Essa separação brutal, sem meio-termo, sem futuro previsível, deixava-nos perturbados, incapazes de reagir contra a lembrança dessa presença, ainda tão próxima e já tão distante, que ocupava agora nossos dias. Na verdade, sofríamos duas vezes: o nosso sofrimento, em primeiro lugar, e em seguida, sofrimento que atribuíamos aos ausentes: filho, esposa ou amante."
"Apesar desses espetáculos inéditos, parece que nossos concidadãos tinham dificuldade em compreender o que lhes acontecia. Havia os sentimentos comuns, como a separação ou o medo, mas continuavam a colocar em primeiro plano as preocupações pessoais. Ninguém aceitara ainda verdadeiramente a doença. A maior parte era sobretudo sensível ao que perturbava seus hábitos ou atingia seus interesses. Impacientavam-se, irritavam-se, e esses não são sentimentos que se possam contrapor à peste. A primeira reação, por exemplo, era culpar as autoridades."
"(...) as autoridades eclesiásticas da nossa cidade decidiram lutar contra a peste com seus próprios meios, organizando uma semana de preces coletivas. Essas manifestações da devoção pública deviam terminar no domingo com uma missa solene, sob a invocação de São Roque, o santo atacado pela peste. (...) A semana de preces foi seguida por um público numeroso."
"(...) O caráter desagradável de que se revestiam agora as formalidades obrigou a prefeitura a afastar os parentes da cerimónia. Tolerava-se apenas que viessem até a porta do cemitério e nem isso era oficial. Sim, pois, no que se refere à última cerimónia, as coisas tinham mudado um pouco. Num extremo do cemitério, num local coberto de lentisco, tinham sido abertas duas enormes fossas. Havia a fossa dos homens e a das mulheres. Sob esse aspecto, as autoridades respeitavam as conveniências, e foi só muito mais tarde que, pela força das circunstâncias, este último pudor desapareceu e se enterraram de qualquer maneira, uns sobre os outros, sem preocupações de decência, os homens e as mulheres."
"Em resumo, a peste lhe convém. De um homem solitário que não queria sê-lo, ela fez um cúmplice. Porque, visivelmente, é um cúmplice e um cúmplice que se deleita. É cúmplice de tudo o que vê, das superstições, dos terrores ilegítimos, das suscetibilidades dessas almas em alerta; de sua mania de querer falar da peste o menos possível e, no entanto, de falar dela sem cessar; de sua aflição e de sua palidez à menor dor de cabeça, desde que sabe que a doença começa por cefaléias, e de sua sensibilidade irritada, suscetível, instável, enfim, que transforma em ofensa esquecimentos e se aflige com a perda de um botão.”
"E, na verdade, nada havia de mais importante sobre a terra que o sofrimento de uma criança e o horror que esse sofrimento traz consigo e suas razões que é preciso descobrir. No resto da vida, Deus nos facilitava tudo e, até então, a religião não tinha méritos. Aqui, pelo contrário, ele encostava-nos contra a parede. Estávamos assim sob as muralhas da peste e era à sua sombra mortal que era necessário encontrar nosso benefício."
"Havia, no entanto, outros motivos de inquietação em consequência das dificuldades de abastecimento, que cresciam com o tempo. A especulação interviera e oferecia, a preços fabulosos, os géneros de primeira necessidade que faltavam no mercado habitual. As famílias pobres viam-se, assim, numa situação muito difícil, enquanto às ricas não assim, faltava praticamente nada. A peste, que, pela imparcialidade eficaz com que exercia seu ministério, deveria ter reforçado a igualdade entre nossos concidadãos pelo jogo normal dos egoísmos, tornava, ao contrário, mais acentuado no coração dos homens o sentimento da injustiça. Restava, é bem verdade, a igualdade irrepreensível da morte, mas essa, ninguém queria."
"Sei apenas que é preciso fazer o necessário para deixar de ser um empestado e que só isso nos permite esperar a paz, ou, na sua falta, uma boa morte. É isso que pode aliviar os homens e, se não os salvar, pelo menos, fazer-lhes o menos mal possível e até, às vezes, um pouco de bem. E foi por isso que decidi recusar tudo o que, de perto ou de longe, por boas ou más razões, faz morrer ou justifica que se faça morrer."
"Essa forma humana que lhe fora tão próxima, crivada agora de golpes de lança, queimada por um mal sobre-humano, retorcida pelos ventos rancorosos do céu, mergulhava diante de seus olhos nas águas da peste, e ele nada podia contra esse naufrágio. Tinha de ficar na margem, com as mãos vazias e o coração oprimido, sem armas e sem recursos, uma vez mais, contra esse desastre."
"Tudo o que o homem podia ganhar no jogo da peste e da vida era o conhecimento e a memória."
"(...) O bacilo da peste não morre nem desaparece nunca, pode ficar dezenas de anos adormecido nos móveis e na roupa, espera pacientemente nos quartos, nos porões, nos baús, nos lenços e na papelada. E sabia, também, que viria talvez o dia em que, para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordaria seus ratos e os mandaria morrer numa cidade feliz."

Albert Camus

Nasceu dia 7 de novembro de 1913 na Argélia, à época da ocupação francesa, mais de um século atrás portanto. A morte de seu pai combatendo na primeira guerra e a condição pobre de sua família tornavam difícil o estudo. Camus, entretanto, mostrava grande talento com as palavras e paixão com a filosofia. Sua família não tolerava bem o fato de que ele seguia na escola secundária, pois o seu destino era trabalhar com seu tio fabricando tonéis e barris. O apoio de um professor, Louis Germain, fez a diferença. Quando ganhou o prêmio Nobel em 1957, Camus enviou-o uma carta agradecendo a mão afetuosa que havia estendido ao garoto pobre que era.
Camus formou-se em filosofia, sua tese de mestrado foi sobre Plotino e sua tese de doutorado, assim como a de Hannah Arendt, foi sobre Santo Agostinho. Foi impedido de se tornar professor pela tuberculose, doença que o acompanhou pelo resto de sua vida. Entrou para o partido comunista francês em 1934 e participou ativamente como escritor em jornais revolucionários como o Alger Republicain. Casou e mudou-se para a França em 1938, engajando-se particularmente na luta contra a segunda guerra mundial. Por causa de sua saúde, foi rejeitado pelo exército francês em 1940.
Datam de 1942 os dois livros mais conhecidos do autor: “O estrangeiro” e “O mito de sísifo”. É desta época também sua polêmica e breve amizade com Jean-Paul Sartre, que havia gostado e elogiado bastante os seus romances. Em meio a guerra, Camus engajou-se na resistência e tornou-se editor do jornal clandestino Combat, que fazia frente aos absurdos da ocupação nazista da França. Em 1945, ao final da guerra, Camus escreve “A peste” que é uma alegoria para a ocupação nazista e para “a condição da vida regulada pela morte”, que retorna tantas vezes na história da humanidade.
Mais tarde, em 1951, Camus lançou “O homem revoltado”, livro em que se posiciona contra o assassinato e contesta uma série de lugares-comuns do comunismo e do marxismo. Assim termina sua amizade com Sarte. Os dois não só deixaram de se falar, como travaram uma pequena batalha, onde Sartre promoveu ao lado de alguns intelectuais franceses uma espécie de linchamento ao pensamento de Camus. Assim, por várias décadas, as teses de Camus foram taxadas de simplistas e conservadoras. Sartre, com toda sua influência no meio intelectual francês, não conseguiu submeter o pensamento de Camus; sorte a nossa, pois as duras críticas feitas à esquerda revelaram-se mais tarde como uma grande via para repensar a luta pelos direitos.
O renome de Camus não se restringe ao campo da filosofia e da literatura. Ele dirigiu várias peças de teatro, montou inclusive “Os Demônios” de Dostoiévski e alguns de seus textos. Suas releituras teatrais inauguravam uma corrente mais tarde denominada estética do absurdo, à qual aderiram ninguém menos do que Samuel Beckett e Eugène Ionesco. Colocar o absurdo em foco significava mostrar ao público a condição humana frente às guerras, a mortalidade, a pequenez diante do mundo. Conceito muito desenvolvido no livro “O Mito de Sísifo”, no qual o autor interpreta o famoso mito do semideus condenado a eternamente rolar a pedra para cima do monte e vê-la cair.

Camus era um apaixonado pelo futebol, dizendo inclusive que devia ao esporte grande parte do que entendia sobre a relação entre os homens. Ela era  vaidoso, vestia-se muito bem e tinha apreço pelas mulheres. De sua infância, guardou não só as lembranças da pobreza, mas a relação de comunidade de Mondovi, a pequena vila em que nasceu e do sol que banhava a costa africana. A morte e o sol são elementos antagônicos presentes em praticamente todos os seus livros, dizia “Para corrigir uma indiferença natural, fui colocado a meio caminho entre a miséria e o sol.”
Albert Camus morreu cedo aos 46 anos num acidente de carro. Continua até hoje sendo um autor subestimado. Considerado um existencialista, apesar de não gostar desse rótulo, ele foi ofuscado pela figura de Sarte e relegado à posição de autor menor. Sua paixão pelas artes; sua aproximação dos pensamentos de Nietzsche e Stirner; sua afirmação plena da vida; sua revolta valorosa; seus escritos prodigiosos; sua negação do assassínio; sua busca pelo além do niilismo, são motivos de sobra para o resgatarmos.
[Fonte: https://razaoinadequada.com/filosofos-essenciais/camus/]