Após a guerra civil em Moçambique, a vila de Tanzigara espanta-se com a surreal situação de um órgão sexual masculino exposto, decepado do corpo que não se encontra, explodido em meio do caminho. Tratava-se de um soldado da ONU em missão no país, os "boinas azuis". O administrador Estevão Jonas toma as providências cabíveis e logo um representante da UNO vem averiguar o desaparecimento ou explosão dos soldados. Um tradutor é designado para acompanhá-lo, caso haja dificuldades na comunicação. Este tradutor é o narrador-personagem que relata os fatos ocorridos na imaginária Vila de Tanzigara.
Mistura onírica e também hilariante de realidade, política, corrupção, magia negra, memórias, lendas, mitos.
Mistura onírica e também hilariante de realidade, política, corrupção, magia negra, memórias, lendas, mitos.
Trechos:
"A morte é uma brevíssima varanda. Dali se espreita o tempo como a águia se debruça no penhasco - em volta todo o espaço se pode converter em esplêndida voação. "
"Secretamente, eu deixara de amar aquela vila. Ou, se calhar, não era a vila, mas a vida que nela vivia. Eu já não tinha crença para converter a minha terra num lugar bem assombrado. Culpa do vigente regime de existirmos. Aqueles que nos comandavam, em Tizangara, engordavam a espelhos vistos, roubavam terras aos camponeses, se embebedavam sem respeito. A inveja era seu maior mandamento. Mas a terra é um ser: carece de família, desse tear de entrexistências a que chamamos ternura. Os novos-ricos se passeavam em território de rapina, não tinham pátria. Sem amor pelos vivos, sem respeito pelos mortos. Eu sentia saudade dos outros que eles já tinham sido. Porque, afinal, eram ricos sem riqueza nenhuma. Se iludiam tendo uns carros, uns brilhos de gasto fácil. Falavam mal dos estrangeiros, durante o dia. De noite, se ajoelhavam a seus pés, trocando favores por migalhas. Queriam mandar, sem governar. Queriam enriquecer, sem trabalhar."
"Se temos voz é para vazar sentimento. Contudo, sentimento demasiado nos rouba a voz. Agora, que ela transitara de estado, eu acedia, completo, às vistas dela.
– Como é, filho: vive no lugar dos bichos?
Devolvi pergunta com pergunta:
– Há lugar, hoje, que não seja de bichos?
Ela sorriu, triste. Podia ter respondido: há, onde eu venho é lugar de gente. Porém, ela permaneceu calada."
– Como é, filho: vive no lugar dos bichos?
Devolvi pergunta com pergunta:
– Há lugar, hoje, que não seja de bichos?
Ela sorriu, triste. Podia ter respondido: há, onde eu venho é lugar de gente. Porém, ela permaneceu calada."
"No meio do escuro pensei: há bichos que vivem na cova e só saem da terra para morrer. Eu queria ser um deles. Sem luz, sem calendário solar. Sombrado o tempo todo, boca e olhos encerrados a poeiras."
"...segundo ele, o corpo era feito de tempo. Acabado o tempo que nos é devido, termina também o corpo. Depois de tudo, sobra o quê? Os ossos. O não-tempo, nossa mineral essência. Se de alguma coisa temos que tratar bem é do esqueleto"
"Viver é fácil: até os mortos conseguem. Mas a vida é um peso que precisa ser carregado por todos os viventes. A vida, caro senhor, a vida é um beijo doce em boca amarga. Se acautele com eles, meu amigo. Uns não vivem por temer morrer: eu não morro por temer viver. Entende, o senhor? O tempo aqui é de sobrevivências. Não é lá como na sua terra. Aqui só chega ao futuro quem vive devagarzito. Nos cansamos só a afastar os maus espíritos."
" Há aqueles que nascem com defeito. Eu nasci por defeito. Explico: no meu parto não me extraíram todo, por inteiro. Parte de mim ficou lá, grudada nas entranhas de minha mãe. Tanto isso aconteceu que ela não me alcançava ver: olhava e não me enxergava. Essa parte de mim que estava nela me roubava de sua visão. Ela não se conformava:
- Sou cega de si, mas hei-de encontrar modos de lhe ver!
A vida é assim: peixe vivo, mas só vive no correr da água. Quem quer prender esse peixe tem que o matar. Só assim o possui em mão. Falo de tempo, falo de água. Os filhos se parecem com água andante, o irrecuperável curso do tempo. Um rio tem data de nascimento?"
- Sou cega de si, mas hei-de encontrar modos de lhe ver!
A vida é assim: peixe vivo, mas só vive no correr da água. Quem quer prender esse peixe tem que o matar. Só assim o possui em mão. Falo de tempo, falo de água. Os filhos se parecem com água andante, o irrecuperável curso do tempo. Um rio tem data de nascimento?"
" Em Tizangara até me receberam bem. Esta gente se afastava, como não querendo ser contaminada. Contudo, não me maltrataram. No início eu me sentia como numa prisão, sem grades, mas cercada por todo o lado. Eu estava como o prisioneiro que encontra no carcereiro o único ser com quem trocar as humanidades. E pergunto: por que nos ensinaram essa merda de sermos humanos? Seria melhor sermos bichos, tudo instinto. Podermos violar, morder, matar. Sem culpa, sem juízo, sem perdão. A desgraça é esta: só uns poucos aprenderam a lição da humanidade."