segunda-feira, 28 de setembro de 2015

O último voo do flamingo - Mia Couto

Após a guerra civil em Moçambique, a vila de Tanzigara espanta-se com a surreal situação de um órgão sexual masculino exposto, decepado do corpo que não se encontra, explodido em meio do caminho. Tratava-se de um soldado da ONU em missão no país, os "boinas azuis". O administrador Estevão Jonas toma as providências cabíveis e logo um representante  da UNO vem averiguar o desaparecimento ou explosão dos soldados. Um tradutor é designado para acompanhá-lo, caso haja dificuldades na comunicação. Este tradutor é o narrador-personagem que relata os fatos ocorridos na imaginária Vila de Tanzigara.
Mistura onírica e também hilariante de realidade, política, corrupção, magia negra, memórias, lendas, mitos.
Trechos:
"A morte é uma brevíssima varanda. Dali se espreita o tempo como a águia se debruça no penhasco - em volta todo o espaço se pode converter em esplêndida voação. "
"Secretamente, eu deixara de amar aquela vila. Ou, se calhar, não era a vila, mas a vida que  nela  vivia.  Eu  já  não  tinha  crença  para  converter  a  minha  terra  num  lugar  bem assombrado. Culpa do vigente regime de existirmos. Aqueles que nos comandavam, em Tizangara,  engordavam  a  espelhos  vistos,  roubavam  terras  aos  camponeses,  se embebedavam sem respeito. A inveja era seu maior mandamento. Mas a terra é um ser: carece de família, desse tear de entrexistências a que chamamos ternura. Os novos-ricos se  passeavam  em  território  de  rapina,  não  tinham  pátria.  Sem  amor  pelos  vivos,  sem respeito  pelos  mortos.  Eu  sentia  saudade  dos  outros  que  eles  já  tinham  sido.  Porque, afinal,  eram  ricos  sem  riqueza  nenhuma.  Se  iludiam  tendo  uns  carros,  uns  brilhos  de gasto fácil. Falavam mal dos estrangeiros, durante o dia. De noite, se ajoelhavam a seus pés,  trocando  favores  por  migalhas.  Queriam  mandar,  sem  governar.  Queriam enriquecer, sem trabalhar."
"Se  temos  voz  é  para  vazar  sentimento.  Contudo, sentimento demasiado nos rouba a voz. Agora, que ela transitara de estado, eu acedia, completo, às vistas dela. 
– Como é, filho: vive no lugar dos bichos?
Devolvi pergunta com pergunta: 
– Há lugar, hoje, que não seja de bichos? 
Ela sorriu, triste. Podia ter respondido: há, onde eu venho é lugar de gente. Porém, ela permaneceu calada."
 
"No meio do escuro pensei: há bichos que vivem na cova e só saem da terra para morrer. Eu queria ser um deles. Sem luz, sem calendário solar. Sombrado o tempo todo, boca  e olhos encerrados a poeiras."
 
"...segundo ele, o corpo era feito de tempo. Acabado o tempo que nos é devido, termina também o corpo. Depois de tudo, sobra o quê? Os ossos. O não-tempo, nossa mineral essência. Se de alguma coisa temos que tratar bem é do esqueleto"
 
"Viver  é  fácil:  até  os  mortos  conseguem.  Mas  a  vida  é  um  peso  que  precisa  ser carregado por todos os viventes. A vida, caro senhor, a vida é um beijo doce em boca amarga.  Se  acautele  com  eles,  meu  amigo.  Uns  não  vivem  por  temer  morrer:  eu  não morro por temer viver. Entende, o senhor? O tempo aqui é de sobrevivências. Não é lá como na sua terra. Aqui só chega ao futuro quem vive devagarzito. Nos cansamos só a afastar os maus espíritos."
 
" Há aqueles que nascem com defeito. Eu nasci por defeito. Explico: no meu parto não me extraíram todo, por inteiro. Parte de mim ficou lá, grudada nas entranhas de minha mãe. Tanto isso aconteceu que ela não me alcançava ver: olhava e não me enxergava. Essa parte de mim que estava nela me roubava de sua visão. Ela não se conformava:
- Sou cega de si, mas hei-de encontrar modos de lhe ver!
A vida é assim: peixe vivo, mas só vive no correr da água. Quem quer prender esse peixe tem que o matar. Só assim o possui em mão. Falo de tempo, falo de água. Os filhos se parecem com água andante, o irrecuperável curso do tempo. Um rio tem data de nascimento?"
 
" Em Tizangara até me receberam bem. Esta gente se afastava, como não querendo ser contaminada. Contudo, não me maltrataram. No início eu me sentia como numa prisão, sem grades, mas cercada por todo o lado. Eu estava como o prisioneiro que encontra no carcereiro o único ser com quem trocar as humanidades. E pergunto: por que nos ensinaram essa merda de sermos humanos? Seria melhor sermos bichos, tudo instinto. Podermos violar, morder, matar. Sem culpa, sem juízo, sem perdão. A desgraça é esta: só uns poucos aprenderam a lição da humanidade."