terça-feira, 29 de setembro de 2015

Divórcio - Ricardo Lísias

capa Ricardo Lisias Divorcio.inddRicardo encontra um diário escrito pela ex-mulher onde ela revela seu verdadeiro sentimento, pensamentos e suas traições.  Após 4 meses de casamento, sai de casa e muda-se para o "cafofo", galpão que ele alugava para guardar os livros que não cabiam no apartamento dividido por ambos. A partir daí o personagem-narrador inicia um processo de decadência e cura. A forma de descrever-se no momento inicial era referir-se a si como se tivesse "perdido a pele", ou seja, em carne viva, frágil e que "só se morre uma vez", o aprendizado da experiência da separação.
O escritor faz a trama como a si mesmo, uma autobiografia de seu divórcio, onde estão presentes os momentos que escreveu contos à Revista Piauí sobre o tema que depois vieram a transformar-se no livro. Também fala de  "O céu dos suicidas", já resenhado aqui no blog. Mas é uma obra ficcional, por mais verídica que nos pareça.
Como processo de cura, Ricardo escreveu e começou a praticar corrida, tendo como meta a competição anual São Silvestre de 2012 na cidade de São Paulo. Em suas insônias e crises, saía à noite, mesmo "sem pele", para caminhar ou correr até a exaustão, assim recuperando sua capacidade de dormir noites mais tranquilas.
As correspondências, o afastamento dos amigos, fofocas, repercussão na imprensa (bem criticada, mas rematada ao final), já que a ex-mulher era jornalista,
"Divórcio" é um livro sobre o livro. O processo de tê-lo escrito, sendo ele mesmo, tal qual um diário, com repetições que ocorreriam em um escrito pessoal e enxertado depois, um processo de cura e recuperação da pela perdida. O livro é a cura do Ricardo-personagem-narrador.
Publicações na revista Piauí:
Trechos:
"Uma cam­in­ha­da lon­ga causa dor nas per­nas, um pe­so nas coxas e o coração acel­era. Es­tou vi­vo, por­tan­to. Co­mo meu cor­po não tin­ha pele, eu pas­sa­va o tem­po in­teiro con­ferindo meus os­sos e os órgãos mais im­por­tantes. Res­pi­rar fun­do não traz ape­nas fôlego: meu pul­mão es­tá aqui."
"No fi­nal da se­gun­da se­mana após o di­vór­cio, re­solvi ir ao lança­men­to de um livro. Por causa do meu ros­to sem pele, es­ta­va com re­ceio de en­con­trar pes­soas con­heci­das, mas achei que uma livraria talvez me dis­traísse um pouco. Em Bu­dapeste, ou­vi um bur­bur­in­ho nos fun­dos do corre­dor de lit­er­atu­ra e, cu­rioso, de­sco­bri um grupo de pes­soas ou­vin­do uma aula so­bre O homem sem qual­idades de Robert Musil. O pro­fes­sor, no in­glês im­pecáv­el dos não falantes muito cul­tos, con­vi­dou-​me para sen­tar, mas, com a de­scul­pa de que não en­ten­do hún­garo, re­cu­sei. Achei aque­la re­união tão char­mosa quan­to a bar­raquin­ha de livros na feir­in­ha de an­tigu­idades de Am­ster­dam. Pre­ciso voltar à Holan­da. Acho que não en­ten­di di­re­ito o país de Van Gogh."
"Em Berlim, gan­hei a apos­ta que tin­ha feito comi­go mes­mo: sete dias sem abrir a bo­ca, co­mu­ni­can­do-​me ape­nas por gestos. A solidão ab­so­lu­ta me trouxe, quan­do eu tin­ha vinte e sete anos, um grande praz­er. Na es­tação Licht­en­berg acabei ilu­di­do. Ali para­do, an­otan­do tu­do o que via (a roupa das pes­soas, por ex­em­plo) e de­pois recor­tan­do im­agens de um número qual­quer da re­vista Der Spiegel, achei que o mun­do to­do es­ta­va em silên­cio. Quan­do o trem chegou, não ou­vi na­da. Fiquei sen­ta­do na platafor­ma até a sex­ta com­posição par­tir. Adoro trens. En­tão voltei para o ho­tel, na anti­ga parte so­cial­ista, a pé. Berlim tem uma ar­quite­tu­ra in­crív­el."
"Come­cei a in­tuir o que acon­te­ceria nas próx­imas se­manas: a con­fir­mação de que ex­iste um es­tra­to so­cial no Brasil, am­plo e en­raiza­do em es­paços que vão do jor­nal­is­mo ao di­re­ito, pas­san­do por se­tores da pro­dução cul­tur­al, que ref­er­en­da o anti­go di­ag­nós­ti­co de ser­mos um país de gente cor­rup­ta, men­tirosa, co­varde e hipócri­ta. Aqui, o sexo é a moe­da de tro­ca mais co­mum. Não é à toa que os es­trangeiros nos enx­ergam co­mo um país lúbri­co e bur­ro."
"O com­por­ta­men­to da min­ha ex-​mul­her de­pois do di­vór­cio, ape­sar de com­ple­ta­mente de­sastra­do, in­di­ca muito cál­cu­lo. Ela não sabe matemáti­ca di­re­ito, mas mes­mo as­sim in­ven­ta equações. Eu de­sco­bri o ros­to da pes­soa com quem ca­sei as­sim que ela o mostrou para mim. Talvez o meu er­ro se­ja faz­er a per­gun­ta: por que não perce­bi antes?"
"Ago­ra, de­pois de uma pan­ca­da sob a for­ma de diário kitsch, já sei que não sou na­da de mais. Min­ha vaidade era tão grande que pre­ci­sei perder to­da a pele para me livrar dela."
"Ho­je sei que es­tou es­tru­tu­ra­do de no­vo, em­bo­ra ten­ha que sem­pre viv­er com uma lanter­na no bol­so: não quero ter out­ro sur­to. O cor­po sente mui­ta dor quan­do es­tá sem pele. O ide­al é mor­rer só uma vez.
"Pre­cis­arei de con­tenção daqui em di­ante. É quase uma con­de­nação. Quem fi­cou louco uma vez es­tá mais per­to da se­gun­da. Ago­ra, perce­bo out­ra per­da cau­sa­da pe­lo meu primeiro casa­men­to: o ím­peto que me trazia bas­tante fôlego. Para res­pi­rar de no­vo, pre­ci­sei cor­rer. Obri­ga­do, transtor­na­da. Já es­tou com rai­va de no­vo."
"A úni­ca pes­soa re­al ex­pos­ta neste livro sou eu. Não havia co­mo ser difer­ente. Es­ta­va sem pele e qual­quer más­cara doía de­mais. No primeiro mês fo­ra de casa, sua­va o tem­po in­teiro. Se tivesse me cober­to, talvez me su­fo­casse. Uma pes­soa com tan­ta fal­ta de ar pre­cisa sair para um es­paço aber­to."