terça-feira, 29 de setembro de 2015

O Tempo entre Costuras - Maria Dueñas

duenasSiri Quiroga foi criada pela mãe Dolores e aprendeu a costurar ajudando-a no ofício, ambas empregadas de Dona Manuela Godina, em Madri.
"Cresci em um ambiente moderadamente feliz, com mais apertos que excessos, mas sem grandes carências nem frustrações".(p.6)
"Depois de dois anos no ateliê, decidiram que havia chegado o momento de eu aprender a costurar. Aos catorze anos comecei com o mais simples: ganchinhos, chuleados, alinhavos. Depois vieram as casas de botão, os pespontos e as bainhas. (...) Aprendi rápido. Eu tinha dedos ágeis que logo se adaptaram ao contorno das agulhas e ao contato dos tecidos, às medidas, às peças e aos volumes. Molde dianteiro, contorno de peito, comprimento de perna. Cava, boca de calça, viés." " (p. 7-8)
Casamento marcado com Ignacio Montes, funcionário público, dois anos mais velho, caído de amores do por ela. "[Ignacio era] alguém com quem passar o resto da minha vida adulta sem ter de acordar a cada manhã com a boca cheia de sabor de solidão. Não me liguei a ele por uma paixão arrasadora, mas sim por um afeto intenso e pela certeza de que meus dias a seu lado transcorreriam sem pesares nem estardalhaços, com a doce suavidade de um travesseiro." (p. 8) [grifo nosso]
Fechado o ateliê de Dona Manuela, por conta da crise na Espanha, mãe e filha ficam desempregadas. Ignacio decide formar a noiva para seguir a carreira administrativa como ele e, primeiro passo, compra-lhe uma máquina de escrever para que comece a praticar. Daí a frase inicial do livro, quando diz "uma máquina de escrever detonou meu destino", já que,  por intermédio dessa compra, conheceu Ramiro Arribas, um galante conquistador e irresistível espanhol por quem caiu de amores e a fez terminar o compromisso com Ignacio.
Recebe uma herança do pai que não conhecia, Alvaro Gonzales, e e vai com Ramiro para Marrocos, antes da Guerra Civil Espanhola de 1936 eclodir, levando na bagagem a herança. A mãe fica em Madri.
Em Marrocos, a realidade idílica que Siri acreditava se desfaz e vê-se sozinha um país estranho, onde não tem conhecidos, com dívidas, sem a herança e grávida.
"Quando despertei, ainda permaneci um tempo internada. Aquelas semanas imobilizada no Hospital Civil de Tetuán serviram para pôr algo parecido a ordem em meus sentimentos e para avaliar o alcance do que os últimos meses haviam representado. Mas isso foi no fim, nos últimos dias, porque nos primeiros, de manhã e de tarde, de madrugada, na hora das visitas que nunca tive e nos momentos em que me levaram a comida que não consegui provar, a única coisa que fiz foi chorar. Não pensei, não refleti, nem sequer recordei. Só chorei." (p. 40)
Os fatos que levaram a essa condição, deixo em suspenso, para ser digerido no prazer da leitura. Com a ajuda do policial Claudio Vázquez, conhece Candelária, uma muambeira que a acolhe em sua pensão. Descobrindo os dotes de costura da nova hóspede, ela a ajuda a abrir um ateliê, logo conseguindo conhecimento pelo ofício bem empregado. Conhece várias pessoas, entre elas Rosalinda Fox, amante do tenente-coronel Juan Luis Beigbeder, comandante militar espanhol que administrador do Protetorado espanhol em Marrocos. Por meio dela consegue meios de trazer para o país a mãe de Siri, isolada pela Guerra e sozinha e também entra na trama Marcus Logan, um jornalista inglês que, em troca de entrevista com Biegbeder, facilitaria a travessia de Dolores.
Siri, com sua mãe já resgatada, aceita o convite de Rosalinda para ajudar os ingleses como espiã, criando em Madri um atelier para atrair as esposas dos militares alemães e, com isso, colher informações e repassa-las à inteligência inglesa. Lá, com nome e origem falsas, constrói uma sólida carreira de costureira, levando compromissos, nomes, relações que consegue colher das clientes.
O livro relata não apenas o caos deixado pela Guerra Civil Espanhola, como a posição espanhola na Segunda Guerra Mundial, um retrato bem construído de uma época de escassez, intrigas, espionagens. Também, através da simples costureira madrilenha Siri Quiroga, mostra as transformações que o tempo e as experiências de vida são professores, o aprendizado é constante  e a confiança é frágil.
Excelente obra. São 480 páginas que se lê devorando as páginas. Bem escrito, pesquisa primorosa da época, personagens bem construídos. Recomendo.
Mais trechos:
"O mundo mudou muito, Dolores, não vê? Os trabalhadores já não seconformam com ir à festa de São Caetano e às touradas de Carabanchel. Agora, trocam o burro pela bicicleta, afiliam-se a um sindicato e, na primeira oportunidade, ameaçam dar um tiro no meio da testa do patrão. Provavelmente não lhes falta razão, pois levar uma vida cheia de carências e trabalhar de sol a sol desde pequenos não é do gosto de ninguém. Mas, aqui, é necessário muito mais que isso: erguendo o punho, odiando àqueles que estão por cima e cantando La Internacional vão conseguir pouca coisa; não se muda um país ao ritmo de hinos. Razões para se rebelar, evidentemente, eles têm de sobra, pois aqui há fome de séculos e muita injustiça também, mas isso não se ajeita mordendo a mão de quem os alimenta. Para isso, para modernizar este país, precisaríamos de empreendedores corajosos e trabalhadores qualificados, uma educação  adequada, e governos sérios que durassem o suficiente no cargo. Mas, aqui, tudo é um desastre, cada um cuida do seu interesse e ninguém trabalha sério para acabar com tanta insensatez. Os políticos, de um lado e do outro, passam o dia perdidos em seus discursos e suas filigranas oratórias no Parlamento. O rei está bem onde está; muito antes já deveria ter ido embora. Os socialistas, os anarquistas e os comunistas lutam pelos seus como deve ser, mas deveriam fazer isso com sensatez e ordem, sem rancores nem ânimos desatados. Os ricos e os monárquicos, enquanto isso, vão fugindo acovardados para o exterior. E entre uns e outros, no fim vamos conseguir que qualquer dia os militares acabem se sublevando, que armem uma quartelada, e então aí é que vamos lamentar. Ou entramos em uma guerra civil, atiramos uns nos outros e acabamos matando irmãos.”
"Um dos efeitos da paixão louca e obcecada é que anula os sentidos para perceber o que acontece a sua volta. Corta rente a sensibilidade, a capacidade de percepção. Obriga-nos a concentrar tanto a atenção em um ser único que nos isola do resto do universo, nos aprisiona em uma couraça e nos mantém à margem de outras realidades, mesmo que transcorram a dois palmos do seu nariz."
"— Candelaria, de que lado você está nesta guerra?
Ela se voltou, surpresa, mas não hesitou um segundo em responder com um firme sussurro.
— Eu? Do lado de quem ganhar, minha querida."
"Meu velho mundo estava em guerra e o amor havia se evaporado dele, levando consigo meus bens e ilusões."
"A nostalgia ameaçou me dar uma chibatada, mas eu soube me afastar a tempo e fugir com um jogo de cintura: eu havia aprendido a desenvolver a arte da fuga cada vez que pressentia próxima a ameaça da melancolia."
"(...)a Espanha exercia seu protetorado em Marrocos desde 1912, alguns anos depois de assinar com a França o Tratado de Algeciras, pelo qual, como costuma acontecer com os parentes pobres, coube à pátria hispânica a pior parte do país, a menos próspera, a mais indese-jável. A costela da África, diziam. A Espanha buscava várias coisas ali: reviver o sonho imperial, participar da divisão do festim colonial africano entre as nações europeias, nem que fosse com as migalhas que as grandes potências lhe concederam; aspirar a chegar ao tornozelo da França e da Inglaterra, já que Cuba e Filipinas haviam saído de nossas mãos e a piel de toro era tão pobre quanto uma barata."
"A Espanha do Marrocos, em termos materiais, havia conseguido muito pouco: mal havia recursos para explorar. Em termos humanos, e nos últimos tempos, porém, havia obtido algo importante para um dos dois lados da contenda civil: milhares de soldados das forças indígenas marroquinas que naqueles dias  lutavam como feras do outro lado do estreito pela causa alheia do exército sublevado."
"Tentei conter o riso triste. As irmãs ressecadas, a mãe gorda e algumas vizinhas sentadas perto da janela e enlutadas de cima a baixo, continuavam desfiando os mistérios do rosário com voz monótona e chorosa. Imaginei, por um segundo, dom Anselmo em vida, com um cigarro no canto da boca, gritando furioso, entre os acessos de tosse, que parassem de rezar por ele de uma maldita vez. Mas o professor não estava mais entre os vivos, e elas sim. E diante de seu corpo morto, por mais presente e quente que ainda estivesse, podiam fazer o que quisessem."
"No dia seguinte a sua partida, dia 3 de setembro de 1939, diante da negativa alemã a se retirar da invadida Polônia, a Grã-Bretanha declarou guerra à Alemanha e a pátria de Rosalinda Fox entrou no que acabaria sendo a Segunda Guerra Mundial, o conflito mais sangrento da história."