terça-feira, 29 de setembro de 2015

Nas tuas mãos - Inês Pedrosa

lEscrita rica, primorosa, poética, intimista, feita em formas de três narrativas ou vozes femininas: primeiro, o diário de Jenny, dirigindo-se aos personagens como se dialogasse com eles, a maioria para  ao marido Antônio e, no decorrer da narração, personagens vão surgindo, primeiro nomes, depois o detalhamento intricado, existencial, de cada um; depois, o álbum fotográfico de Camila, a filha de Pedro (amante do marido Antônio), adotada por Jenny; por último, as cartas de Natália, a filha de Camila com um moçambicano que nem chegou a saber que foi pai. Relatos de amor, abnegação, desencontros, relações familiares, memórias dos que se foram, perca da sanidade, buscas, o sentido de ser feliz de cada uma, a identificação, as mágoas, dores e alegrias de mães, filhas, avós.
Entrelaçado na estória das três gerações, Jenny, Camila e Natália, as mudanças históricas de Portugal e um retrato de Moçambique.
Um livro emocionante. Recomendo.
Frases, trechos, passagens:
"As pessoas aborrecem as histórias felizes e têm razão, a felicidade convoca o que nós há de mais melancólico e solitário"
"Os factos (...) não existem, são peças de loto que inventamos e encadeamos para nos sentirmos vitoriosos ou, pelo menos, seguros. Cada ser tem o seu segredo, cada amor o seu código intransmissível."
"Não procures no amor o caminho que ele não tem. No fim da Guerra, as pessoas descobriram-se entre ruínas e acreditaram que o mundo podia salvar-se através da construção. Os mestres de obras enriqueceram, passaram a empreiteiros e tornaram-se exemplos a seguir para tudo. A utilidade fez-se valor dominante, os filósofos estudaram ciências naturais, estenderam inquietações sociais em mesas, como dantes só se fazia à massa de bolos, aos animais vivos ou aos cadáveres humanos, e montaram consultórios para resolver as pessoas. E o amor, que não tem resolução, desapareceu"
"Não procures explicação para a minha vida, nem a tomes com pena ou escândalo; quando eu ficar velha ou que pareça louca, lê nestes cadernos que eu fui feliz. Não te preocupes como ou quanto, nem caias na tentação de distinguir amor e paixão: a pouco e pouco, fui vendo que essas divisões são armadilhas que se montam para que o pano caia sobre os nossos olhos e a imortalidade do nosso horizonte. O amor (...) consiste na divina graça de parar o tempo. E nada mais se pode dizer sobre ele."
"(...) a separação dói muito aos que cedo se apercebem da enormidade d amor diante da estreiteza da vida"
"O ciúme é o vírus do analfabetismo sentimental."
"As pessoas são mais imprevisíveis para o bem do que para o mal, por isso nunca me canso de viver. Mesmo agora, sozinha nestes salões vazios. Nas transparências da solidão, as múltiplas tonalidades da tua alma e das almas de todos os que aqui se cruzaram conosco observam-se com mais nitidez."
"As pessoas morrem entranham-se nas paredes da casa e nas copas das árvores do jardim"
"(...) a mesquinhez lusitana se devia ao facto de estarmos fora dos percursos da História. 'É uma vantagem e uma infelicidade. Uma vantagem porque, por onde a História passa, deixa um rastro de sangue. Uma desvantagem porque, por onde a História passa, deixa um rastro de criatividade'"
"Até os livros se zangaram comigo; abro-os e as palavras escondem-se de mim, desfazem-se num rio de tinta negra que me lembra que estou sozinha, que afinal não há ninguém a quem entregar todo o meu amor. Custa-me cada vez mais escrever. Não tenho nada para fazer exceto pensar. E o pensamento começa a mastigar a casa de chocolate da minha vida. E debaixo das tábuas dessa casa há uma pilha de mortos em decomposição, irreconhecíveis, que estendem os braços para me agarrar, e sugam-me a voz muito devagar."
"De qualquer forma, não vale falar. As palavras afastam-nos da verdade, empurram-nos para a realidade para que não possamos tomar conta da verdade das coisas. 'Acenda a televisão, vó. Porque é que não vê televisão?', pergunta Natália, e eu respondo-lhe que não há nada para ver nessa caixa de hipnotizadores."
"Preciso enterrar a vaidade do sofrimento primeiro. É preciso enterrar a vaidade do pensamento, também, que é a que custa mais a sair"
"Depois que os psicólogos inventaram o luto, a vida ganhou outro ritmo, muita velocidade, mais ação. Vejo cada vez mais gente a dirigir-se sobriamente para o cinema no minuto seguinte ao do desmoronar dos sentimentos, bebendo doses de violência colorida, sessão após sessão, até que a dor se esfacele como papel de uma pastilha elástica esquecida no bolso. Os que se demoram no luto para lá dos prazos previstos pelos tratados de saúde mental tornam-se incômodos, cansativos como crianças, nunca se sabe o que se lhes há-de dizer."
"Pensei que as imagens me poderiam curar, que poderia colar os instantâneos do mundo sobre o sangue do meu coração e fazê-lo parar. Pensei que o amor podia ser domesticado e o lado negro do instinto maternal racionalizado. Pensei demais. Tudo está escrito nos espaços brancos que ficam entre uma palavra e a seguinte. O resto não importa."
"(...) quero que me explique a fórmula mágica, preciso de saber como é que se faz para acreditar que as pessoas são aquilo que, no fundo, no fundo (porque, para nossa desgraça, para alem dos bons corações somos seres mui inteligentes) nós sabemos que elas não são. Por mais que me esforce, continuo no estado mitológico puro: fé ou desespero. Não sei fazer de conta que não vejo o que não vejo."
"O problema é que as pessoas que propagam o racismo, fazem-no diariamente. Mas as pessoas que o condenam, não procuram senão uma explicação. Não fazem nada, diariamente. Falar é fácil, lutar é que é mais complicado."
"Todos os erros da terra se resumem a esta expressão rasa: evitação da vida. Sabemos que a própria vida se encarregará de nos evitar, inexoravelmente, e mesmo assim escusamo-nos a seguir a particular música do nosso sangue, até ao fim. A sua morte ensina-me a proximidade da minha, Jenny. Aterrou-me pensar que um dia destes cessarei de existir sem deixar mais que um 'pronto, pronto' em minha memória. Aterrou-me ainda mais pensar que pode haver um céu onde a verdade de uma vida se projete em cinemascope, um céu de onde as vidas que nunca ousaram desenrolar-se sejam despejadas como chuva miúda sobre a ignorância dos vivos."
"Lastimo o exílio sobrenatural dessa terceira entidade, rodando no vazio de um firmamento demasiado alto. Enviei de manha a caixa com a flor. Ao princípio da noite acendi a lareira da sala. Tinha muitas saudades deste fogo."