segunda-feira, 28 de setembro de 2015

A Ciociara - Alberto Moravia

Cesira é uma camponesa de Ciociara, região montanhosa das proximidades de Roma e, ao casar-se, muda-se para a cidade com o marido comerciante. Sem amor, numa vida que tirava satisfação apenas em ter sua casa sobre a loja, limpá-la e cuidar da filha. Suportava a violência e as traições do marido e, ficando viúva, dedica-se a cuidar da loja e da filha até início da II Grande Guerra. Veio a escassez de alimentos e, com ela, Cesira percebeu a oportunidade de ganhar dinheiro, entrando para o mercado negro de mercadorias e alimentos, que lhe rendeu uma boa soma. Porém, agravando-se a guerra, até o contrabando se escasseou. A artilharia pesada já sobre Roma, decide então ir para o campo, à procura dos pais ou de abrigo até o fim da guerra. Daí se inicia a viagem das duas, mãe e filha, com malas e mantimentos, ficando em casas de camponeses, onde alugavam quartos (já que juntara um bom dinheiro e trazia consigo em uma costura na saia), morando nove meses em Santa Eufêmia, com os camponeses e outros tantos refugiados que para lá também fugiram.
Terminada a guerra, voltam a Roma, porém assim como Heráclito disse "não podemos banhar-nos duas vezes no mesmo rio, porque o rio não é mais o mesmo... e nós também não somos mais os mesmos", voltam outras pessoas, a filha Rosetta não é mais a doce, ingênua e crédula filha que saiu de Roma; Cesira não é mais a esperançosa e lutadora mulher de antes.
Vários personagens aparecem nesse tempo, sempre com descrições minuciosas pelo autor, fazendo parte da trama, tendo como cenário sempre a guerra, a ganância, a desilusão, medo e sobretudo a fome, muita fome.
Um livro sublime, muito bem escrito, que lê-se de um só fôlego. Classifico-o como um dos melhores livros que já li.

Passagens:
"Inexperiência e religião, fundidas, formavam uma perfeição que eu julgava sólida como uma torre e, ao contrário, era frágil como um castelo de cartas. Em suma, não levava em conta que a verdadeira santidade é feita de conhecimento e de experiência, muito embora dum gênero particular, e não pode resultar da candura e da ignorância, como era o caso de Rosetta. Mas que culpa tive eu? Criei-a com amor; e, como todas as mães deste mundo, tive o cuidado de lhe ocultar as coisas ruins da vida; pensava que, quando saísse de casa, quando casasse, essas coisas as conheceria até depressa"
"Oh, sim, somos plantas e não seres humanos, ou, melhor, mais plantas do que seres humanos, e é da terra onde nascemos que vem toda a nossa força; se a abandonamos, não somos uma coisa nem outra, nem plantas nem seres humanos, apenas leves farrapos que a vida atira para aqui e para ali, ao sabor do vento das circunstâncias"
"Cem liras só chegam para comprar um bocado de pão, ao passo que antes da guerra chegavam para se viver durante meio mês, posso afirmar que não há amigos fiéis em tempo de guerra, nem homens, nem dinheiro, nem nada. A guerra revolve tudo e, juntamente com as coisas que vemos, destrói muitas outras que não vemos e no entanto existem. "
"Falei tanto e tanto que a pouco e pouco esses Aliados se tornaram quase como os santos da aldeia que fazem milagres e trazem a chuva e o bom tempo: um reza-lhes e outro insulta-os, mas todos esperam qualquer coisa deles. Todos esperavam coisas extraordinárias desses Aliados, precisamente como dos santos, e todos estavam certos de que, com a sua chegada, a vida não só se tornaria normal, mas até muito melhor do que o normal."
"E mais uma vez, ouvindo aqueles estrondos e olhando aquela paisagem, pensei que os homens andam para um lado e a natureza para outro e, quando a natureza desencadeia um temporal de trovões, raios e chuva, muitas vezes os homens são felizes em suas casas, ao passo que, quando a natureza sorri e parece querer prometer uma felicidade eterna, os homens desesperam e desejam a morte."
"...ao ouvi-lo falar, por exemplo, do fascismo e dos fascistas, experimentava sempre uma sensação de espanto. Durante vinte anos, isto é, desde que começara a raciocinar, só tinha ouvido dizer bem do Governo e, embora de vez em quando encontrasse isto ou aquilo a criticar, sobretudo em coisas que diziam respeito à minha loja, pois também nunca me preocupei com a política, pensava no fundo que, se os jornais aplaudiam sempre o Governo, deviam ter boas razões para isso e não nos competia a nós, pobres e ignorantes, julgar o que não compreendíamos nem conhecíamos."
"Mas tenho observado que às vezes as crianças fazem precisamente o contrário do que os pais lhes dizem para fazer ou do que eles próprios fazem, não por entenderem verdadeiramente que os pais procedem mal, mas pela única e boa razão de que são crianças, e os pais são pais, e eles querem ter também a sua própria vida, tal como os pais tiveram antes a deles. Penso que sucedeu o mesmo a Michele. Foi educado pelos fascistas para ser fascista; mas, porque queria viver e pensar a seu modo, tornou-se antifascista."
"Aquele pradozinho verde sobre o qual o sol de inverno se tornava tão quente que parecia mesmo estarmos em maio, com as montanhas da Ciociaria no horizonte, coroadas de neve, e do outro lado o mar cintilando ao fundo da planura de Fondi, parecera-me um lugar encantado, onde muito bem podia estar escondido um tesouro, como ouvia dizer em criança. Mas esse tesouro não estava debaixo da terra, sabia-o agora, encontrara-o em mim própria, com tanta surpresa como se o houvesse desenterrado com as minhas mãos: era aquela calma profunda, uma completa ausência de medo e de ansiedade, uma confiança em mim e no que, passeando sozinha, sentia crescer no meu íntimo à medida que os dias passavam."
"Enquanto tocara harmônio, fora o homem que em tempo de paz era ferreiro; quando pegou na camisa, era o soldado que não conhece o meu nem o teu e não respeita nada nem ninguém. Em suma, como já disse, a guerra não quer dizer só matar, mas também roubar; e aquele que em tempo de paz não mataria, nem roubaria por nenhum ouro do mundo, em tempo de guerra encontra no fundo do coração o instinto de roubar e de matar que há em todos os homens: mas encontra-o porque o encorajam a encontrá-lo, dizendo-lhe a todo o momento que aquele instinto é bom e deve obedecer-lhe, de outro modo não será um verdadeiro soldado. Então ele pensa: 'Estamos em guerra... tornarei a ser aquilo que na realidade sou quando voltar a paz... por agora, deixo-me ir ao sabor da corrente...'"
" vale mais nascer imperfeito e tornar-se, a pouco e pouco, se não perfeito, pelo menos melhor, do que nascer perfeito e depois ser obrigado a abandonar aquela primeira efêmera perfeição pela imperfeição da experiência e da vida. "
"nao havia piedade, nem emoção, nem simpatia humana: um homem morria e os outros não faziam caso, cada um pensando só em si próprio. Era a guerra, como dizia Concetta, e eu temia que esta guerra se prolongasse nas nossas almas por muito tempo, depois de a verdadeira guerra ter acabado."
"retornava confiante a casa, que a antiga vida retomaria o seu curso, apesar de todas as mudanças e tragédias. Mas também me dizia que essa minha nova confiança a devia a Rosetta e ao seu canto e às suas lágrimas. E que, sem essa dor de Rosetta, Roma não teria tornado a ver as duas mulheres inocentes que um ano antes dali tinham partido e entretanto se tornaram, com a guerra e por causa da guerra, uma ladra e outra prostituta. "
"...lembrei-me daquela noite em que nos leu em voz alta, na cabana de Santa Eufêmia, a passagem do Evangelho sobre Lázaro, zangando-se porque os camponeses não tinham compreendido nada e gritando que estávamos todos mortos à espera da ressurreição, como Lázaro. Então, essas palavras de Michele tinham-me deixado na dúvida agora, sim, compreendia que Michele tinha razão e que durante algum tempo também Rosetta e eu estivéramos mortas, mortas para a piedade que se deve aos outros e a nós próprios. Mas a dor viera salvar-nos no último momento; e, assim, de certa maneira, a história de Lázaro aplicava-se também a nós: graças à dor conseguíramos por fim sair da guerra, que nos encerrava no seu túmulo de indiferença, crueldade e maus sentimentos, para retomarmos o curso da nossa vida, que talvez seja uma pobre vida cheia de escuridão e de erros mas a única que devemos viver, como sem dúvida no-lo diria Michele se estivesse ali conosco."

Alberto Moravia
Alberto Moravia

 Pseudônimo de Alberto Pincherle, nasceu em Roma a 28 de novembro de 1907 e morreu nessa mesma cidade a 26 de setembro de 1990. A publicação do seu primeiro romance, Os Indiferentes, em 1929, levou a que fosse desde logo aclamado como um dos mais interessantes autores da narrativa italiana da época. Considerado precursor do existencialismo, com uma obra onde se destacam os temas da sexualidade moderna e da alienação social, viu várias das suas histórias adaptadas ao cinema, entre elas O Conformista (1951), por Bernardo Bertolucci em 1970, e O Desprezo (1954), por Jean-Luc Godard em 1963. A par da produção literária, Moravia foi também jornalista, argumentista de cinema e dramaturgo. Em 1984 foi eleito deputado do Parlamento Europeu pelo Partido Comunista, lugar que ocuparia até à sua morte.[Fonte: Wook]