segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Cais da Sagração - Josué Montello

O barqueiro Mestre Severino, já velho, com problemas cardíacos, personagem de força bruta, machista, avesso a modernidades (barco, para ele, não poderia ter motor, mas velas para navegar), puro reflexo do nordestino que vive o mar como extensão de sua vida, decide seguir viagem para São Luis, mesmo contra orientação médica ou pedidos da companheira Lourença. Precisa passar ao neto Pedro os ensinamentos que herdou do pai, que trouxe do avô, uma família de barqueiros. Enquanto prepara a viagem, revê sua estória, casamento e grande amor com a prostituta Vanju, os anos que passou na cadeia, a paixão pelo mar no barco "Bonança"... Em paralelo, Lourença, a companheira inseparável de Mestre Severino, fiel, mantendo-se ao lado dele, mesmo quando foi preterida pela bela Vanju no coração do barqueiro. Lourença, que mesmo sem casar com Mestre Severino, criou a filha de Vanju, quando do seu assassinato, e também o neto da morta, Pedro, adolescente, que tem a convicção que não quer ser barqueiro, tornando-se introspectivo e solitário.
Personagens fortes, que emocionam, conquistam. Finda-se a leitura com um suspiro de que terminou um excelente livro. E pretendo ler outros do mesmo autor. A forma de escrita, a construção em retalhos da trama, a sensibilidade com que constrói desde o Mestre Severino até o padre Dourado... Empolgante!
Trechos:
"Para ele, em verdade, a família era uma dinastia de varões, e todos sobre as águas, indômitos, queimados de sol, rompendo as ondas com a quilha de seus barcos. Se pudesse retroceder no tempo, sabia que ia encontrar outros barqueiros como o pai, como o avô, como o bisavô, fiéis ao mar até a morte, numa interminável genealogia de nautas invencíveis."
"Antigamente moça não mostrava o pé. Hoje, mostra o pé, a perna, a coxa, tudo! Tudo, Mestre Severino. Quando senta, dobra a perna, o coxão aparece. Mesmo na igreja, diante de Nosso Senhor Jesus Cristo. Na hora do sermão, só eu sei a força que faço para não disparatar. Tudo mal sentado. Mesmo as velhas, que têm o dever de dar o bom exemplo. Não sei se o senhor já sabe que ultimamente eu não tenho confessado ninguém.
Pois é verdade. Só na hora da morte, para ministrar a extrema-unção. Fora daí, não. Não agüento mais com as safadezas que todo mundo vem me cochichar no pé do ouvido. Basta. Não suporto mais. A vontade que tenho agora é ficar dentro do confessionário com um chicote rabo-de-tatu, para aplicar a penitência, eu mesmo, na bunda de muita velha. Para mim, chega! Assim também é demais! Quanta barbaridade! Quanta falta de vergonha! Só pecado."
"A Lourença? É mesmo. Agora é que estou vendo direito. Como você está velha! Mais do que eu. O tempo judiou com você, criatura. Foi o tempo ou foi Mestre Severino? Um dos dois. A verdade é que você está mesmo acabada. Quem te viu e quem te vê!"
"Chegara a pensar em fundear o barco mais adiante, para deixá-lo ao abrigo da muralha do cais, na hipótese de uma rajada mais forte na hora do temporal. Agora, em vez de proteger-se da tormenta, queria sair ao seu encontro. Se não tinha mais nada que esperar da vida, para que viver  mais? Trazia a morte consigo, ali no peito, já havia decidido entregar-se. Mais dias, menos dias, estaria diante de Deus. O melhor que fazia era morrer logo, e morrer no mar, arrastando na morte o neto, que não queria ser barqueiro."