terça-feira, 29 de setembro de 2015

Rostos na multidão - Valeria Luiselli

lA escritora mexicana construiu um livro intrigante, difícil compreende-lo a princípio. Narrado em fragmentos, a primeira parte descreve de forma intercalada a voz em primeira pessoa de uma mulher mãe do "filho médio" e "bebê" (sim, esses são os nomes deles), morando com o marido numa casa decadente e que procura escrever um livro, onde a personagem é ela mesma na juventude. A voz de seu passado é a segunda parte dos fragmentos intercalados: ora a mãe, outra ela jovem, uma editora de pensamento livre e cleptomaníaca.
Depois o livro toma outro ritmo, como num sonho, construindo a estória de Gilberto Owen, um escritor por quem a mãe fica obcecada, intercalando consciências ora do ex-marido (nesse momento, já separada), ora do escritor,ora de si mesma e dos filhos, o médio inteligente e curioso e os balbucios do bebê. Fantasmas de uma consciência que se esvai pincelada por momentos do cotidiano que vive, fantasias e realidade.
Foi o primeiro livro que tive dificuldade de compreender. Voltei ao início duas vezes e, ao findar a última página, reiniciei.
Escrita de forma inteligente, com humor, alheamento. Ainda me questiono se fiz a leitura certa do exemplar. Mas talvez seja isso o que a escritora tenha deixado perceber: o enxerto individual dos rostos que se diluem, se misturam, imaginário e obsessão.
Trechos:
"O que você tem que fazer — disse — é sair daqui o máximo que puder. Voltar só para comer e tomar banho, nunca para dormir, porque, à medida que a pessoa vai passando noites em casas diferentes — quartos, pensões, hotéis, quartos emprestados, camas compartilhadas —, conhece um pouco mais e talvez mais profundamente sua intimidade. Aprenderíamos a sondar mais fundo em nós mesmos nos olhando de vez em quando nos espelhos de um banheiro alheio, lavando a cabeça com outro xampu, ou colocando o rosto, alguma noite, no travesseiro de outra pessoa. Só assim podemos ser seriamente fiéis ao chamado milenar: conheça-se a si mesmo."
"Meu marido chora. Abraço-o e depois vou até o quarto das crianças. Dou um beijo no médio e examino o berço, para ver se a bebê ainda respira. Respira. Mas eu não tenho ar."
"Volto ao romance sempre que as crianças me permitem. Sei que tenho de gerar uma estrutura cheia de buracos para que sempre seja possível chegar à página, habitá-la. Nunca colocar além da conta, nunca estofar, nunca mobiliar nem adornar. Abrir portas, janelas. Levantar muros e derrubá-los."
"Havia uma árvore do lado de fora de sua casa na qual sempre via sua mulher morta. Não a via, mas sabia que estava ali. Como o medo em um pesadelo, como certas tristezas em uma tarde longa. Todas as noites, quando voltava para casa, despedia-se dela, da árvore, dela na árvore. Não dizia nada. Só pensava nela ao passar ao lado da árvore e a roçava com as pontas dos dedos. Era uma maneira de se despedir, outra vez, toda vez. Certa noite se esqueceu. Entrou no apartamento, escovou os dentes e foi para a cama. Então se deu conta de que tinha se esquecido da mulher. Atormentado pela culpa, saiu para a rua. Não pôs os sapatos. Abraçou a árvore e chorou até molhar as meias, os pés e os joelhos na rua nevada. Quando voltou para casa, não tirou as meias para dormir."
"Certa vez li em um livro de Saul Bellow que a diferença entre estar vivo e estar morto radica somente no ponto de vista: os vivos olham do centro para fora, e os mortos, da periferia para algum tipo de centro. Comecei a olhar de fora para dentro, de alguma parte para nenhuma. Inclusive agora, que meu marido dorme, e a bebê e o menino médio dormem, e eu poderia estar dormindo também, mas não estou, porque às vezes sinto que minha cama não é minha cama, nem estas mãos minhas mãos."
"Dakota gostava da minha árvore morta. E eu gostava que ela gostasse.
Ela me faz companhia e conversamos sobre muitas coisas — disse-me uma vez.
E o que ela lhe diz?
Não me diz nada, está morta."
"Durante minha segunda gravidez, apenas dormia. Fui acordada na semana 39 pelas contrações. Meu marido estava lendo ao meu lado. Com minha mão, coloquei a dele no arco do meu ventre. Está sentindo?, perguntei-lhe. Está chutando? Não, está vindo. O primeiro parto tinha sido uma cesárea induzida, porque eu não sentia nada, as contrações nunca chegaram. Desta vez, a sensação começava na parte baixa das costas. Um calor gelado. Depois, começando pelos flancos, a pele se arrepiava e estirava. Um fenômeno mais geológico do que biológico: um tremor, um leve arqueamento, e a pança inteira começava a se elevar, como um corpo de terra emergindo, rompendo a superfície marinha. E a dor, uma dor mais parecida com uma centelha de luz, um brilho que deixa uma esteira, que deixa um rastro e que se esvai tão incompreensivelmente quanto volta a chegar."
"Eu comecei a morrer em Manhattan, no verão de 1928. Certamente, ninguém além de mim se dava conta das minhas mortes — as pessoas estão muito ocupadas com suas próprias vidas para reparar nas pequenas mortes dos outros. Eu me dava conta porque, depois de cada morte, tinha febre e perdia peso."
"Não um romance fragmentário. Um romance horizontal, contado verticalmente."
"As tragédias pessoais, como a cegueira paulatina e fatal, se impõem a nós como as cataratas aos olhos-d’água onde caem. Suponho que daí o eufemismo das cataratas. A cegueira, como os castigos e as cataratas, vem de cima, sem um propósito ou sentido determinável; e a aceitamos com a modesta resignação de um corpo de água preso em uma bacia, perpetuamente alimentado por mais de si mesmo, e finalmente substituído por sua própria matéria doente. Minha cegueira é branca-preta e eu tenho o Niágara bem em frente."
"Devo escrever um romance vertical, contado horizontalmente. Uma história que tem de ser vista de baixo, como Manhattan do subway."