segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Servidão Humana - Somerset Maugham

O autor relata com caráter semi-autobiográfico, a vida de Philip Carey, jovem sensível que nasce deficiente (pé torto congênito), fica órfão cedo e é criado pelo tio, que é vigário. Philip cresce influenciado pelas regras e dogmas da religião, mas se sente dividido entre esta e o que os livros e os estudos lhe fazem conhecer; é muito estudioso e ansia por conhecimento. Sua infância também é marcada por sua frágil condição física, que se torna motivo de profunda vergonha. Philip abandona, aos poucos, sua fé; tenta a carreira de contador em Londres; experimenta a vida de pintor em Paris; decide, então estudar medicina. Philip sobressai-se bastante como estudante de medicina, quando conhece a garçonete Mildred Rogers, uma mulher ambiciosa, egoísta e bastante frívola. Ele dispende seus poucos recursos com ela, mesmo sabendo que ela mantém casos paralelos. Vivem uma vida em comum, mas são completamente diferentes. Embora não tenham nada em comum, ele passa por um processo doentio de completa submissão obsessiva em relação a Mildred, que apenas o usa. Nem mesmo os conhecimentos filosóficos que adquiriu são capazes de fazê-lo livrar-se dessa obsessão. Ainda assim consegue desenvolver-se no curso de Medicina, mas anula-se quase completamente por causa dessa dependência afetiva neurótica. Aprofunda-se mais ainda na filosofia, em virtude do sofrimento pelo qual passa. Chegamos a sentir certa repulsa pelas situações descritas de completa anulação pessoal do protagonista, mas é nessa relação - em que obsessão e o desejo de liberdade se confrontam - que percebemos a força dessa obra.
Postagem escrita por Rilva Muñoz em DIÁRIO LITERAL
Trechos do livro:
"A primeira coisa que lhe chamou a atenção foram as ilustrações e para começar leu as histórias de fundo mágico e depois as outras; e aquelas de que gostava lia e relia. Não pensava em mais nada. Esquecia a vida que o cercava. Era preciso chamá-lo duas ou três vezes para que fosse jantar. Insensivelmente contraíra o mais delicioso hábito do mundo, o hábito da leitura: ignorava que construíra assim um refúgio para as amarguras da vida; ignorava também que estava criando um mundo irreal que transformaria o mundo real quotidiano numa fonte de cruéis decepções."
"Podia ser, também, que os trinta anos de revolução lhe tivessem ensinado que os homens não eram talhados para a liberdade; e pensava na sua vida gasta na busca de algo que não valia a pena encontrar. Ou talvez se sentisse cansado e esperasse apenas, com indiferença, o alívio da morte."
"Após pequena pausa, Philip observou: afinal, não compreendo por que se deva acreditar em Deus. Mal as palavras lhe saíram da boca, concluiu que já não tinha fé. Perdeu o fôlego de repente, como se tivesse mergulhado em água fria. Voltou-se para Weeks, com os olhos espantados, e de súbito teve medo. Na primeira oportunidade, despediu-se do amigo. Queria estar sozinho. Era a coisa mais extraordinária que já lhe acontecera. Tentou reflectir; aquilo era emocionante, uma vez que o caso parecia interessar toda a sua vida (julgava que qualquer decisão nesse terreno alteraria profundamente o curso da sua existência) e um erro podia conduzir à condenação eterna. Quanto mais reflectia, porém, mais reforçava a sua convicção, e embora durante as semanas que se seguiram devorasse livros de tendências cépticas, não o fez senão para confirmar aquilo que sentia instintivamente. O facto é que deixara de acreditar, não por esta ou aquela razão, mas porque lhe faltava o temperamento religioso. A fé fora-lhe incutida do exterior. Era uma questão de ambiente e exemplo."
"Era uma questão de ambiente e exemplo. Novo ambiente e novo exemplo proporcionavam-lhe, agora, a oportunidade de encontrar-se a si próprio. Descartava-se facilmente da crença que alimentava em criança, como uma capa de que já não necessitava. A princípio, a vida pareceu-lhe estranha e solitária, sem a fé que, embora nunca o tivesse percebido, representava um apoio infalível. Sentia-se como um homem que, acostumado a andar apoiado ao bastão, fosse de repente compelido a dispensá-lo. Parecia, realmente, que os dias eram mais frios e as noites mais solitárias. A novidade da sensação animava-o, contudo; parecia transformar-lhe a vida numa aventura emocionante. Em pouco tempo, o bastão que atirara para longe e a capa que lhe caíra dos ombros assemelhavam-se a um fardo insuportável de que tivesse sido aliviado. As práticas religiosas durante tantos anos impostas afiguravam-se-lhe partes integrantes da própria religião."
"Durante séculos inteiros viu cavalos saltar cercas com as pernas estendidas e aceitou-o como facto incontestável. Viu as sombras pretas, até Manet as descobrir coloridas. Se resolvemos circundar os objectos com uma linha preta, o mundo verá a linha preta e haverá a linha preta. Se pintarmos a erva de vermelho e as vacas de azul, o mundo os verá vermelhos e azuis e serão de facto vermelhos e azuis."
"Quando for mais velho, compreenderá que a coisa mais necessária para tornar este mundo um lugar tolerável é reconhecer o inevitável egoísmo da humanidade. É absurdo exigir altruísmo por parte dos outros: para que sacrificariam eles os seus desejos aos nossos? Quando quiser compreender que cada um, no Mundo, se preocupa apenas consigo próprio, exigirá menos dos seus semelhantes. Já não lhe causarão decepções e passará a olhá-los com mais simpatia. Os homens buscam, na vida, uma única coisa: o prazer."
"Um ano ou dois antes, Philip recusaria compartilhar um quarto com quem quer que fosse, por ser tão susceptível no que dizia respeito ao pé deformado, mas essa sensibilidade mórbida tornara-se agora menos acentuada. Em Paris, aquilo não parecia coisa de grande importância, e, embora nunca conseguisse esquecer-se, deixou de imaginar que os outros estivessem constantemente a observá-lo."
"Clutton pôs as mãos sobre os olhos para melhor se concentrar no que desejava dizer.
- No artista, a visão traduz-se por uma sensação particular! Ele é impelido a exprimi-la sem saber porquê, só pode fazê-lo com traços e cores. É como o músico: lê um ou dois versos e uma certa combinação de notas apresenta-se-lhe ao espírito: ele não sabe por que tais e tais palavras evocam tais e tais notas; mas evocam. Dou-te outra razão para provar que a crítica não tem sentido algum: um grande pintor força as pessoas a verem a natureza como ele a vê. Mas, na geração seguinte, outro pintor vê o mundo de maneira diversa. Então, o público não o julga pela sua obra, mas pelo seu predecessor. O grupo de Barbizon acostumou os nossos pais a ver as árvores de certa maneira, e quando Monet chegou e começou a pintar de outro modo, disseram: «Mas as árvores não são assim». Nunca lhes passou pela cabeça que as árvores são exactamente como um pintor as vê. Nós pintamos de dentro para fora. Se impomos a nossa visão ao mundo, ele chama-nos grandes pintores; se não, ignora-nos, mas nós continuamos os mesmos. Não atribuímos qualquer sentido às palavras grandeza e mediocridade. O que acontece posteriormente ao nosso trabalho não tem a menor importância; tirámos dele tudo quanto podíamos, enquanto o realizávamos."
"O pensamento de cada filósofo estará inseparavelmente ligado ao homem que ele fora. Conhecendo-se-lhe a vida, era fácil imaginar em grande parte a filosofia que escrevera. Dir-se-ia que não agimos de certa maneira por pensar de certa maneira, mas antes pensamos de certa maneira por de certa maneira termos sido feitos."
"O importante, pois, é descobrir o que somos e o nosso sistema filosófico construir-se-á por si mesmo. Parecia a Philip haver três coisas a encontrar: a relação do homem com o mundo em que vive, a sua relação com os homens entre os quais vive e, finalmente, a relação do homem para consigo."
"Dizia que a força era o direito. De um lado está a sociedade, um organismo com as suas leis de desenvolvimento e autopreservação, enquanto do outro há o indivíduo. A sociedade classifica de virtuosas as acções que redundam em seu proveito, e de viciosas as que a prejudicam. Bem e mal não significam mais do que isso. o pecado é um preconceito de que o homem livre se deve desembaraçar. Na luta com o indivíduo, a sociedade dispõe de três armas: a lei, a opinião pública e a consciência. As duas primeiras podem ser combatidas pela astúcia, única arma do fraco contra o forte - o vulgo exprime isso muito bem quando diz que pecado é ser apanhado nele - mas a consciência é o traidor dentro dos muros, lutando na alma de cada um em prol da sociedade e levando o indivíduo a imolar-se, num sacrifício irreflectido, à prosperidade do inimigo. Sim, porque é evidente que o Estado e o indivíduo consciente de si próprio são irreconciliáveis."
"Philip não se abandonou sem luta à paixão que o consumia. Sabia que todas as coisas humanas são transitórias e por isso devem cessar um dia ou outro. Suspirava ardentemente por esse dia. O amor era como um parasita no seu coração, nutrindo uma existência odiosa com o sangue da sua vida. Absorvia-o de modo tão intenso, que ele não podia encontrar prazer noutra coisa."
"Não é possível escolher entre o Campanile de Giotto e uma chaminé de fábrica, consideradas essas coisas em si mesmas. E depois as coisas belas enriquecem-se das impressões que causam em gerações sucessivas. Eis por que as coisas velhas são mais belas do que as modernas. A Ode a uma Urna Grega é mais linda agora do que quando foi escrita, porque, durante uma centena de anos, a leram os namorados e nas suas estrofes buscaram conforto os desolados."
"Ficou a olhá-la.
- O amor é uma coisa terrível, não é? Imagina que há quem deseje amar... "
"Não sabia que eflúvio passava do homem para a mulher, da mulher para o homem, e tornava um deles escravo do outro. Era cómodo chamar-lhe instinto sexual, mas, se não passasse disso, ele não compreendia por que causava tão veemente atracção por uma pessoa, de preferência às outras. Era irresistível: o espírito não podia lutar contra ele; ao lado dessa força, de nada valiam a amizade, a gratidão e o interesse. Porque não atraíra sexualmente Mildred, nada do que fizera tivera qualquer efeito sobre ela. Essa ideia revoltava-o. Transformava a natureza humana em bestial e sentiu subitamente que o coração dos homens estava cheio de recantos sombrios."
"Pensas que isso é uma condenação? Estás enganado. Não tenho medo do meu medo. O argumento da doutrina cristã, de que a gente deve viver sempre com os olhos postos na morte, é uma loucura. A única maneira de viver é esquecer a morte. A morte não tem importância. O temor dela jamais devia influenciar a menor das acções de um homem sábio. Sei que vou morrer lutando para respirar e sei que hei-de ter um medo horrível. Sei também que não me será possível evitar o amargo arrependimento do género de vida que me levou a tais circunstâncias; mas desautoriza esse arrependimento. E agora, alquebrado, velho, doente, pobre, moribundo, tenho ainda nas mãos a minha alma e não me arrependo de nada."
"Aquilo era a coisa que mais desejava no mundo. Que lhe importavam a Espanha e as suas cidades, Córdova, Toledo, Leão? Que significavam para ele os pagodes da Birmânia e as lagunas das ilhas do Pacifico? As Américas estavam ali, ao alcance da sua mão. Parecia-lhe que em toda a sua vida aspirara aos ideais que outros, com as suas palavras e escritos, tinham inculcado nele, e nunca seguira o desejo do seu próprio coração. A sua conduta fora influenciada pelo que julgava dever fazer e não pelo que desejava de toda a alma. Agora, punha tudo isso de lado com impaciência.
Vivera constantemente no futuro e o presente sempre, sempre lhe fugira por entre os dedos. Os seus ideais? Pensou no desejo de formar um desenho complexo e belo com as miríades de factos insignificantes da vida: não vira também que o desenho mais simples, aquele segundo o qual o homem nasce, trabalha, casa, procria e morre, era de certo modo o mais perfeito? Podia bem ser que abandonar-se à felicidade fosse aceitar a derrota; mas era uma derrota melhor do que muitas vitórias."