terça-feira, 29 de setembro de 2015

Nu de botas - Antônio Prata

1Antônio é um garotinho esperto entre os três até quase os cinco anos que conta seu mundo na perspectiva infantil, seus amigos de infância, questionamentos típicos de uma ótica de criança com lógica. São relatos de sua vida, escrito em primeira pessoa, falando dos pais, o amor enorme pela mãe, a presença das irmãs, a separação dos pais, os amiguinhos, a escola, as descobertas. Escritos de um adulto na memória de sua infância.
Um livro leve, engraçado, curto. Recomendo.
Trechos:
"Eu tinha medo do Caio, mas um pouco de pena, também. Supunha que pelo menos parte de sua inadequação se devesse ao batismo: afinal, era ou não mau augúrio vir ao mundo com a queda no nome?"
"Cada vez que íamos começar a série com uma nova consoante, eu tentava antecipar as palavras que poderiam surgir. D e A formavam  Dá, L e E formavam Lê, L e I formavam Li… E foi essa prática antecipatória que me fez tremer quando a professora começou a série do C. “C e A?”, ela perguntou, e enquanto todos respondiam “Ca!” só consegui pensar que chegaria a vez do U e a classe gritaria, em uníssono, a sílaba proibida."
"Era aquela coisa de sempre: um monte de parentes e outros adultos mais ou menos conhecidos mexendo no meu cabelo, na minha bochecha e na minha barriga, dizendo que eu estava grande e bonito. Uma mulher ruiva e muito perfumada me deu um beijo babado na testa e disse que tinha me visto nascer — ela me viu nascer, o seu Duílio me viu nascer, eu devia ter sido parido diante de uma arquibancada, só podia ser. Um gordo cruzou a sala, me levantou e ficou repetindo, com bafo de cerveja, alternando olhares entre mim e meu padrasto: “É corintiano?! É corintiano?! Hein, é corintiano?! Diz: corintiano, ahn?!”. (...) O seu Duílio estava sentado numa poltrona, num dos cantos da sala. Era mesmo velho pra burro. Tinha os cabelos todos brancos e um monte de pintinhas no rosto. Minha mãe o beijou. “Parabéns, seu Duílio!” Depois, meu padrasto apertou sua mão. “Oitenta, hein, seu Duílio! Daqui a pouco é noventa, já!”
O velho ficou falando umas coisas sobre fazer oitenta anos, eu fiquei olhando pra ele, fingindo que ouvia, mas a minha cabeça estava longe, lá na sala de casa, assistindo Bambalalão e provavelmente por lá ficaria até o final daquela tarde se meus olhos não tivessem, acidentalmente, ido parar na perna esquerda do aniversariante — ou melhor, num pedaço da poltrona onde deveria estar sua perna esquerda. Olhei uma vez, olhei duas, olhei três. Longos segundos se passaram até que eu pudesse aceitar o que via: a perna esquerda do seu Duílio não existia.
Que coisa espetacular. Se a minha mãe tivesse perguntado: “O que você prefere, assistir Bambalalão ou conhecer um homem sem perna?”, claro que eu ficaria com a segunda alternativa. Lembrei-me do homem que vira no circo, um dia, botando uma mulher de maiô numa caixa e a serrando ao meio. Seria seu Duílio aquele homem? Teria ele cortado a própria perna? Como? Será que ele conseguia tirar e recolocar a perna sempre que quisesse? Onde guardava a perna, quando não a usava? Numa gaveta do quarto, no banheiro, na área de serviço, junto à bicicleta? Conseguiria ele remover também outros membros?
Minha mãe me cutucou: “Ô, Antonio, não vai dar oi pro seu Duílio?”. Como não? “Oi, seu Duílio! Cadê sua perna?!” Minha mãe me olhou com uma cara estranha. Achei que ela não tivesse ouvido o que eu acabara de dizer. Falei ainda mais alto: “Olha! Olha! Ele só tem uma perna! Mãe! Mãe! Cadê a perna do seu Duílio?”. Todos na sala fizeram silêncio, até o gordo com bafo de cerveja, que narrava aos meus tios um gol do Casagrande no último domingo."
"Minha mãe propôs que caminhássemos até as pedras, que fizéssemos um castelo, disse até que poderia ler algo dos irmãos Grimm ou do Monteiro Lobato, mas o tédio tem uma bunda imensa: quando assenta as nádegas sobre nossas cabeças, achata toda a circunferência do mundo conhecido; para escapar de seu adiposo domínio, só encontrando alguma atividade inédita, em mares nunca dantes navegados."