terça-feira, 29 de setembro de 2015

A Partitura do Adeus - Pascal Mecier

lUm encontro casual. Adrian Herzog poderia não ter encontrado Martijn van Viliet num café em Sanint-Rémy certa manhã, seguiu a curiosidade e entrou na estória do personagem que do qual relata, contada em primeira pessoa, como um testemunho de convergência de duas vidas.
Van Viliet tinha como meta e grande amor, depois da morte da esposa Cécile, a filha Lea. Quando ainda com 8 anos, a menina, abatida e sem vida pela morte da mãe, mostrou-se impressionada pelo som de um violino tocado em uma estação de trem, ele viu aí a direção a tomar para devolver vitalidade à filha. Daí se inicia o encontro de Lea com a música e o desencontro com a sanidade, na infinita aflição desenvolvida pela ambição no encontro da música. Van Viliet também analisou cada traço de mudança em Lea, viveu e sofreu.
A própria vida torna-se secundária para o personagem narrador, frente à ditada vida do recém-chegado amigo. Percorrem lugares antes visitados por Van Viliet e revivem acontecimentos do passados. De si, a comparação com o seu casamento desfeito, a paixão não vivida pela enfermeira, o relacionamento frio e distante com a filha, o abandono da sua profissão de cirurgião conceituado. "Chegou o fim", como uma mesma partitura para as composições de cada um. A vida de outrem invade seus próprios limites, fazendo-o esquecer de seu próprio mundo. A saída encontrada pelo amigo por acaso também não seria a mesma que ele buscava, como fim do silêncio e do vazio?
Um bom livro. Recomendo.
Trechos:
"(...) Me es­que­ci da min­ha própria vi­da; des­de Loy­ola de Colón pen­so ape­nas na vi­da de Lea. Sem faz­er a bar­ba, fui de car­ro pelas ruas vazias até a es­tação. De­va­gar, de­sci a es­ca­da rolante de out­ro­ra, ain­da ina­ti­va, e ten­tei imag­inar co­mo eu era antes de a músi­ca do vi­oli­no pas­sar a reger min­ha vi­da. Será pos­sív­el saber co­mo era antes, saben­do co­mo fi­cou de­pois? Será real­mente pos­sív­el? Ou será que aqui­lo que re­cebe­mos, o que veio pos­te­ri­or­mente, fi­ca aneste­si­ado pe­lo pen­sa­men­to ob­sti­na­do de que is­so é o antes?"
"Os pais tam­bém sabi­am que não havia si­do su­fi­ciente. Uma mãe pas­sa­va a mão pe­lo ca­be­lo da fil­ha, um pai colo­ca­va o braço so­bre o om­bro do fil­ho. E en­tão, de re­pente, fi­cou claro para mim que, quan­do os ol­hares dos out­ros re­caem so­bre nós, é sem­pre cru­el, mes­mo com boa von­tade. Eles nos trans­for­mam em pro­tag­onistas. Não pode­mos mais ser nós mes­mos, temos de ser para os out­ros, que nos afas­tam do que so­mos. E o pi­or: temos de fin­gir ser al­guém de­ter­mi­na­do. Os out­ros es­per­am por is­so. Em­bo­ra não se­jamos na­da dis­so. Talvez não quisésse­mos que ninguém de­ter­mi­na­do ex­is­tisse para nos es­con­der­mos nu­ma im­pre­cisão ben­faze­ja."
"Ao me lev­an­tar, não ol­hei para Lea nem para Marie. Não havia na­da a ex­plicar. Era uma fu­ga. Uma fu­ga da aflição dessas cri­anças, que tin­ham apren­di­do com al­guém que era im­por­tante ir até lá e ficar à mer­cê dos ol­hares e dos ou­vi­dos dos con­cor­rentes e dos ju­ra­dos. O mais vel­ho tin­ha 20 anos; a mais no­va, 16. JE­UNESSE MU­SI­CALE, a cidade es­ta­va re­ple­ta dessas le­tras, que pare­ci­am be­las e pací­fi­cas, tin­ta doura­da so­bre me­do repre­sa­do, am­bição su­fo­cante e mãos úmi­das. (...) Será que to­dos sen­tem is­so, que um me­do grande nun­ca se dis­si­pa, ape­nas se es­conde atrás de uma grande pi­las­tra, para de­pois rea­pare­cer com força to­tal? O sen­hor sente o mes­mo? E por que is­so é difer­ente da ale­gria, da es­per­ança e da fe­li­ci­dade?"
"(...) Lá naque­le lu­gar, so­bre os de­graus, ela pare­cia es­tar à beira de um pre­cipí­cio. Cam­balea­va no tem­po, ou mel­hor, não con­hecia mais nen­hum tem­po, não havia mais nen­hum tem­po den­tro dela — ape­nas o de­se­jo de que as coisas com Marie voltassem a ser boas, com a mul­her a quem ela deu o anel doura­do de pre­sente e a quem en­vi­ou os muitos cartões-​postais de Ro­ma, com a mul­her que lhe fazia o sinal da cruz na tes­ta antes de to­das as ap­re­sen­tações.
E o pai não que­ria ser aque­le a pisotear es­sa es­per­ança e esse de­se­jo, a quem ela odi­aria de­pois dis­so."
"Era muito es­tran­ho. Achei que ia sen­tir um pouco de pâni­co, me­do de ficar louco. Em vez dis­so, me sen­ti bem. Não foi ex­ata­mente um sen­ti­men­to de fe­li­ci­dade, mas um tipo de sat­is­fação, e acho que era a sen­sação de me tornar semel­hante a Lea, in­de­pen­den­te­mente do quão louco is­so pos­sa soar. Ou talvez eu não de­vesse diz­er tornar semel­hante, mas cor­re­spon­der. Sim, era is­so. Era a sen­sação de re­spon­der, a par­tir da min­ha noção do cam­in­ho in­fini­to de Lea que es­mae­cia, ao plano da ir­re­al­idade que se ex­pandia sem parar den­tro de min­ha fil­ha. Is­so era perigoso, e pude perce­ber. Afi­nal, is­to ex­iste: a con­tem­plação dó­cil, res­ig­na­da e, de al­gu­ma maneira, sat­is­fei­ta de um pre­cipí­cio."