terça-feira, 29 de setembro de 2015

Cemitério de Pianos - José Luis Peixoto

1O livro é uma sucessão de estórias de Franciscos Lázaros. O próprio existiu, lá pras bandas de 1912, um maratonista português que faleceu numa disputa de Jogos Olímpicos em Estocolmo. O autor partiu de dados biográficos do atleta, mas garante que há muita ficção no relato. Esse dito Francisco Lázaro é filho de outro Francisco Lázaro, que está morrendo logo no início no livro, enquanto sua filha primogênita dá a luz Hermes, em outro hospital. Mas há um terceiro Francisco Lázaro, que só se percebe no decorrer da trama, quando ligamos o tio (irmão do Francisco primeiro) que não tem um olho e, portando, não é o que morre de início, mas o que não morre (putz! spoiler, desculpa!), que nasce no dia em que o pai morre na maratona.
Complicado? É, concordo, mas aí que está a graça do exemplar!
É um livro tão bem escrito que faz com que se concatene os diversos entrelaçamentos de estórias, buscando o fio que ligue a qual voz em primeira pessoa fala no momento. Mas tem se ter atenção para não confundir as bolas, ou melhor, os Franciscos. Marta, Maria, Simão e Francisco Lázaro (os três) são os personagens nominados, os demais são "minha mulher", "marido de Marta", "marido de Maria", etc...
Excelente livro. Fiquei fascinada pelo autor, vou em busca de outras obras dele, como "Nenhum Olhar" (livro que recebeu prêmios),  "Livro", "Uma casa na Escuridão"... devora-los-ei!!!
Mais que recomendo. Excelente.
Passagens:
"Nas histórias que o meu tio contou durante esses dias, percebi um pouco mais da minha própria história. O meu pai, como o seu pai antes dele, tinha passado anos a fazer portas e janelas porque não conseguia sobreviver apenas de consertar pianos. Na maior parte do tempo, o meu pai fazia portas e janelas, fazia bancos para as pessoas se sentarem, fazia mesas a desejar que as pessoas tivessem pratos de sopa para pousar nelas; mas, em todas as ilusões, escutava pianos, como se escutasse amores impossíveis. Quando acabava de consertar um piano, sozinho, sem saber uma nota, o meu pai fechava a oficina toda para, no centro da carpintaria, tocar músicas que conhecia e músicas que inventava."
"A verdade, como o silêncio, existe apenas onde não estou. O silêncio existe por trás das palavras que se animam no meu interior, que se combatem, se destroem e que, nessa luta, abrem rasgões de sangue dentro de mim. Quando penso, o silêncio existe fora daquilo que penso. Quando paro de pensar e me fixo, por exemplo, nas ruínas de uma casa, há vento que agita as pedras abandonadas desse lugar, há vento que traz sons distantes e, então, o silêncio existe nos meus pensamentos. Intocado e intocável. Quando volto aos meus pensamentos, o silêncio regressa a essa casa morta. É também aí, nessa ausência de mim, que existe a verdade."
"(...) Quando ia treinar, passava pelas ruas a correr e ninguém podia imaginar o mundo de palavras que levava comigo. Correr é estar absolutamente sozinho. Sei desde o início: na solidão, é-me impossível fugir de mim próprio. Logo após as primeiras passadas, levantam-se muros negros à minha volta. Inofensivo, o mundo afasta-se. Enquanto corro, fico parado dentro de mim
e espero. Fico finalmente à minha própria mercê."
"Tudo o que conseguiu foi sem ti, contra ti. E o tio Simão? Não podes ter esquecido todo o mal que lhe fizeste. Não o perdeste na noite que jamais poderás esquecer. Perdeste-o muito antes. também eu, a minha irmã, a Elisa, o Hermes. Tu morreste, estás morto, mas os teus erros continuam vivos. Os teus erros continuam."
"Havia muito tempo que eu conhecia a minha solidão: todos os pensamentos que tinha sobre o silêncio, palavras a perseguirem um eco que nunca alcançavam. Era na dificuldade da minha solidão: caminho negro de estátuas: que eu me edificava. Aquela manhã era feita de momentos que pertenciam a esse tempo. A serradura que cobria o chão tornava-me silencioso."
"Ainda era pequeno os rapazes da minha idade pensavam em brincadeiras, não queriam que chovesse e eu, sempre, sempre, com um peso negro no peito. Por um momento, a Maria a dizer alguma coisa engraçada, a nossa mãe contente, eu contente e, logo a seguir, ou nesse mesmo momento, a lembrar-me do peso negro: chumbo: que nunca me desaparecia do peito. A ser talvez inverno, noite, a cozinha, e a Marta a falar de algo apenas bom. O nosso pai num silêncio satisfeito. E eu, quase bem, excepto pelo peso que nunca desaparecia, que eu tinha a certeza que nunca iria desaparecer do meu peito. E nunca desapareceu, nunca desaparecerá aquele fim de tarde, a luz entre os ramos dos pessegueiros (...). Nunca me esqueço e, para lembrar-me sempre, sempre, tenho um peso negro que nunca me desaparece do peito. A culpa."