Jantar Secreto
Raphael Montes
Editora Schwarcz / 2016
376 páginas
Literatura brasileira
Tenho sério problema com Raphael Montes: uma espécie de vício, ao devorar a primeira página, só paro quando fecho a última folha, como uma refeição das mais apetitosas já provadas. Tietagem de fã à parte, vamos ao Jantar Secreto, que, aliás, tem tudo a ver com o tema gastronômico.
Cinco amigos de infância lá do interior do Paraná, de uma cidade chamada Pingo D'Água, passam no vestibular e se mudam para o Rio de Janeiro, dividindo um apartamento em Copacabana. Dante, Leitão, Hugo e Miguel.
Leitão, o obeso amigo que abandonou a faculdade logo nos primeiros anos, apaixona-se por uma prostituta Cora contratada pelos amigos para presente de aniversário dele e, para pagar os serviços prestados, deixa de pagar o aluguel do apartamento, tarefa dele. Voltar à cidade pequena Pingo é o maior pesadelo de todos. Então, para saldar a dívida, eles bolam um jantar para convidados que se proponham a pagar um valor alto e para poucos participantes, aproveitando o curso de gastronomia de Hugo, que seria o chef cozinheiro, Cora entra também no negócio. Leitão, o responsável pela parte tecnológica, altera um detalhe no convite para o jantar: seria servido carne humana, ou, como eles preferem chamar "carne de gaivota". A procura foi maior do que eles esperavam e, para honrar o compromisso, arranjam um corpo e fazem o jantar secreto para os dez canibais, digo, comensais. Porém, o sucesso é tanto que um dos convidados pagantes, Umberto, não aceita que fique apenas num único evento, traça uma trama para que seja dado continuidade ao projeto canibalesco. De dois jantares semanais, passa-se a três. Preços mais elevados. Fila de espera. A carne humana vicia.
E os corpos? De onde viriam? Logo descobrem que Umberto mentia sobre a origem de defuntos frescos para refastelar os famintos. E a culpa? Não haveria também via em um boi, um coelho ou um porco?
Um livro que te prende, faz rir e a cada capítulo algo novo e inesperado te surpreende. Magnífico! Nunca deixarei de ler Montes, coleciono seus livros com um prazer de faminta frente a um prato saboroso.
"Deixa de ser besta… A mulher já tava morta. Depois de morto, todo bicho é igual. Você é engraçado, sabia? Se a carne vem naquele pacote, coberto no plástico transparente, você não se importa. Pega, frita e come sem nem pensar de onde veio. Agora fica aí, cheio de mi-mi-mi. Quer saber? A única diferença é que não sou hipócrita como você."
"Certa vez, num banheiro público, havia um poema:
“Você é o que você come
Você come o que você é.”"
"Comecei a encarar o dia seguinte como um sonho psicodélico. Aquelas pessoas só queriam comer carne humana porque precisavam viver alguma experiência que injetasse adrenalina em sua vida monótona. Cora estava certa: não dava para ser hipócrita. Eu comia carne desde criança, não comia? Nunca me importei com o sofrimento do boi, com a tortura do ganso, nunca perdi um segundo de sono em homenagem aos porcos e aos frangos que devorei ao longo de toda a minha existência. No fundo, aquelas pessoas não eram tão diferentes de mim. Finalmente, consegui dormir."
"Certa vez, num banheiro público, havia um poema:
“A carne mais barata do mercado
É a carne negra.”"
"A melhor maneira de escapar de uma responsabilidade é colocar a culpa em alguém maior do que você. Por isso, as religiões fazem tanto sucesso. Dá certo alívio às pessoas imaginar que existe uma entidade superior no controle dos momentos de felicidade e tragédia. Naquele caso, nem Deus dava para culpar pela merda em que a gente havia se metido. A responsabilidade era toda nossa."
"Certa vez, num banheiro público, havia um poema:
“O cagaço motiva
O recalque constrói.”"
"Albertina levou as mãos ao rosto, inebriada, emitindo um esgar de prazer. Naquele instante, quando notei os anéis em seus dedos, não deixei de encontrar certa semelhança entre o embelezamento feminino e os temperos do jantar. Tudo era preparação da carne."
"Certa vez, num banheiro público, havia um poema:
“qualquer coisa
pode ser poesia se
você der
enter de vez em
quando.”"
"O Brasil já exporta muita coisa, Dante. Carnaval, futebol, caipirinha e mulata. Mulher gostosa, puta. Está na hora de exportar gastronomia. Tem gente de sobra no mundo. A China está toda fodida com a superpopulação. A África, a Índia… Já viu quanto mendigo tem por aí? E as favelas? Parecem formigueiros! Ainda tem essa cambada que vagabundeia e vive de subsídio do governo. Bolsa Família, cotas, nem sei mais o quê. Pega essa gente toda e fatia. Faz bife. Carpaccio. Pobre à milanesa. Vai revolucionar a cozinha no mundo. E vai dar uma esvaziada boa, uma limpada."
"Certa vez, num banheiro público, havia um poema:
“Nessa vida
Poucas são as verdades
Às vezes é melhor dar o cu que a intimidade.”"
"O ser humano é um bicho escroto por natureza. Não importa o que digam, todo mundo é assim. Rico ou pobre, negro ou branco, velho ou novo, não interessa. Somos todos iguais em escrotidão"
"Certa vez, num banheiro público, escrevi um poema:
“O ser humano nasce
Cresce,
Reproduz-se,
E é servido no jantar.”"
"Nas outras salas, ficam as galinhas e os porcos. Mas isso não dá nenhum dinheiro, comparado ao que criamos aqui”, Umberto disse, como um açougueiro orgulhoso. “As luzes ficam acesas vinte horas por dia, para que comam mais ração. Em duas semanas, eles ficam ligeiramente acima do peso, com aquela deliciosa camadinha de gordura."
"O álcool é o KY existencial"
-
Jantar Secreto Raphael Montes Editora Schwarcz / 2016 376 páginas Literatura brasileira Tenho sério problema com Raphael Montes: uma ...
-
Antônio é um garotinho esperto entre os três até quase os cinco anos que conta seu mundo na perspectiva infantil, seus amigos de infância, ...
-
[Sem dados técnicos no exemplar lido] Um título perfeito para o livro. Ou seria melhor "ligeiramente emaranhados", apenas par...