terça-feira, 29 de setembro de 2015

Sashenka - Simon Montefiore

lSashenka ou Alexandra Samuilovna Zeitlin-Palitsin é filha de uma rica Rússia antes da Revolução de 1917, de origem judia, começa o aprendizado comunista através do tio Mendel, irmão de sua mãe. Logo ingressa na clandestinidade sob o pseudônimo de "camarada raposa", presa, mesmo nos seus 16 anos de idade. Após a vitória socialista, faz parte da cúpula do Partido. Além do panorama da Rússia faminta e miserável que antecedeu a Revolução, também relata os bastidores da era Stalin (ele mesmo como personagem real no livro, entre outras figuras históricas, como Rasputin), de execuções, perseguições, medos e espionagem. Numa segunda fase do livro, Sashenka com os dois filhos é acusada de traição, separada da família; numa terceira etapa, Ketinka, uma historiadora, já no século XX, é contratada para descobrir a origem de uma rica família inglesa, desvendando os arquivos secretos da época e alinhavando a estória de Sashenka, seu destino e os filhos.
Um bom livro.
Trechos:
"Mas ela aprendeu que havia uma solução: uma luta de classes que avançaria em estágios, até um paraíso de igualdade e decência para os trabalhadores. A teoria marxista era universal e utópica, e toda a existência humana se encaixava em sua bela simetria de história e justiça. Ela não conseguia entender por que os trabalhadores da sociedade industrial, especialmente em São Petersburgo e Moscou, os camponeses dos vilarejos da Rússia e da Ucrânia, os criados e criadas das casas de seu pai, por que todos não se levantavam e massacravam seus patrões de uma vez por todas. Apaixonou-se pelas ideias do materialismo dialético e pela ditadura do proletariado."
"Eu rezaria para Deus se tivesse certeza de que existe um, disse a si mesmo. Mas, se existe, somos apenas vermes na poeira, aos olhos dele. O sucesso é a minha religião. Eu faço minha própria história."
"Alguns dos mais antigos amigos e conhecidos de Sashenka haviam se revelado traidores, espiões e trotskistas. Ela nunca notara que muitos deles usavam máscaras, fingiam ser bons comunistas, quando, na realidade, não passavam de fascistas, sabotadores e traidores. Como todos os seus amigos, riscara, nos álbuns de fotos da família, os rostos dos camaradas engolidos pelo chamado “moedor de carne”. Sashenka e Vânia também tinham ficado preocupados, embora fossem totalmente dedicados à Revolução. Até o casamento deles era um casamento comunista. Ambos compartilhavam a fé no partido — que era tudo para eles. Compartilhavam muitas coisas, embora, pensou ela de repente, suas diferenças se acentuassem à medida que ficavam mais velhos. Mas o Terror terminara; agora podiam respirar sossegados. O país estava preparado e unido para a guerra contra os fascistas de Hitler, que se aproximava."
"Quando os gritos não eram o bastante para mantê-la acordada, eles a jogavam no chão, davam-lhe chutes e tapas no rosto. Agora Sashenka entendia. Era nisso que se transformara o partido. Ela conseguiu aguentar uma noite sem dormir. Mas, na segunda noite, achou que estava começando a se desintegrar. Sentia náuseas o tempo todo; suor porejava dela e ela não tinha certeza se estava doente ou completamente exausta. Dormia em pé; os guardas a encontravam dormindo no lavatório e, mesmo lá, a acordavam. E o que era pior, seus medos a envolviam, crescendo como fungo: e se Vânia tivesse sido sempre um Inimigo? As crianças estavam perdidas, chorando por ela, ou estavam mortas. Horas e dias se arrastavam. Sem exercício. Sem se lavar. Ela era alimentada três vezes ao dia, por intermédio de uma bandeja passada pela portinhola, mas estava sempre com fome, sempre com sede. Sozinha na cela, acordada a cada poucos minutos, ouvia as vozes de Branquinha e Carlo. Não podia quebrar. Por seus filhos. Mas seus rostos e cheiros a deixavam prostrada. Eles já estavam perdidos, disse a si mesma. O plano de Satinov jamais funcionaria: eles estavam em algum daqueles orfanatos, sendo estuprados, torturados, espancados, corrompidos; e, quando fossem mais velhos, seriam fuzilados. Ela deveria confessar que mentira, qualquer coisa era melhor do que aquilo. Só para poder dormir em uma cela fria. As crianças já estavam mortas. Mortas para ela, mortas realmente. Não mais lhe pertenciam. Estavam perdidas para sempre. Ela já não fazia parte do mundo dos vivos."
"Bem, esses arquivos são diferentes. Onde há sofrimento, há uma espécie de santidade. Os nazistas sabiam que estavam agindo errado, então esconderam tudo. Mas os bolcheviques estavam convencidos de que estavam agindo certo, então conservaram tudo. Goste você ou não, você é uma historiadora russa, uma pesquisadora de almas perdidas; e, na Rússia, a verdade nem sempre é escrita com tinta, como em outros lugares, mas com sangue inocente. Esses arquivos são tão sagrados quanto o Gólgota. No farfalhar seco dos papéis, você pode ouvir choro de crianças, manobras de trens, ecos de passos nas celas e o tiro da pistola Nagan, distribuindo os sete gramas de chumbo. Os papéis cheiram a sangue."