domingo, 1 de maio de 2016

Enquanto agonizo - William Faulkner


Título original: As I lay dying
Tradução: Hélio Pólvora
Baseada na segunda edição americana, 1930
Expansão Editorial
Romance ambientado em Yaknapatawpha, condado imaginário situado no estado do Mississipi, EUA, anos 20.
Addie Bundren está morrendo, deitada em sua cama, enquanto acompanha pela janela do quarto o filho mais velho Cash, fabricar seu caixão. Seu último desejo é que seja enterrada em sua terra Jefferson, conforme verbalizou para o marido. Após sua morte, o marido, Anse, junto com os cinco filhos, pegam a estrada com uma parelha de burros para a peregrinação com o caixão e a morta dentro dele. Personagens embrutecidos, feito raízes de árvores centenárias que se vê apenas os nós na terra, sem emoções, secos, áridos, sem comunicação, onde apenas o olhar já diz sentimentos, reações, estado. O marido, personagem sem coragem para o trabalho ou enfrentar a vida, cumpre a palavra dada à esposa, mesmo que ela não tenha sido a fidelíssima e amantíssima companheira que esperava (se fosse consciente do fato, talvez não se desse ao trabalho, quem sabe). Mas sería um último sacrifício, antes de sua liberdade final? Cash, o filho mais velho, carpinteiro, mais responsável, Darl, um jovem sem coerência de pensamentos, perturbado, Jewel, o filho revoltado, bruto, Dewell Dell, a garota que leva consigo um grande segredo e o garoto Vardaman, um menino que  imagina a mãe como um peixe, acompanha o mundo com a  imaginação infantil sem lapidação.

O livro é dividido em pequenos capítulos (creio que 59), contados em primeira pessoa, cada um com seu  ponto de vista do momento da trama. 15 primeiras pessoas, inclusive um capítulo com a morta. Entre eles, o médico, vizinho, entre outros personagens que surgem no andar da estória, inclusive um capítulo com cinco palavras: "minha mãe é um peixe", em Vardaman.

Um livro magnífico, daqueles que, ao fechar da última página, fica em silêncio,  olhando o vazio, ainda com os sentimentos adormecidos, doídos pela forma de escrita, arrebatada pelo vazio e pela vida que retrata tão cruamente o autor.

"Para fazer a gente, são necessárias duas pessoas; para morrer, basta uma. Assim o mundo marcha para o fim"

"Lembro-me que, quando jovem, eu julgava a morte um fenômeno do corpo; agora sei que  não passa de função do espírito - também do espírito dos que sofrem a perda. Os niilistas dizem que a morte é o fim; os fundamentalistas, que é o princípio; quando, na realidade, não é mais que um inquilino ou uma família que sai de uma casa alugada ou de uma cidade"

"Deus haver criado as mulheres está em que o  homem não conhece seu próprio bem quando este bem aparece."

"Em quarto estranho é preciso criar em nós mesmos o vazio, para poder dormir. E antes de se ficar vazio para o sono, o que é que somos, afinal? E quando ficamos vazios para o sono, já não somos nada. E quando estamos cheios de sono nunca somos nada. Não sei o que sou. Não sei se sou ou não sou. Jewel sabe que ele é, porque não sabe que ele não sabe se é ou não é. Não pode esvaziar-se para dormir porque
não é o que é e é o que não é. Além da parede escura, posso ouvir a chuva modelando a carroça que é nossa, a carga que já não pertence aos que derrubaram e serraram a madeira, e que também não é deles, que a compraram, e tampouco nossa, embora esteja amontoada em nossa carroça, pois só o vento e a chuva a modelam para Jewel e para mim, que não estamos dormindo. E já que o sono é o não ser e a chuva e o  vento são o que foram, a carroça não é. Contudo, a carroça é, porque, quando a carroça era, Addie Bundren não seria. E Jewel é, portanto, Addie Bundren tem de ser. E, nesse caso, eu devo ser, ou  não poderia esvaziar-me para dormir em quarto estranho. E se ainda não estou  vazio,  então eu sou".


"Sou eleito do Senhor, pois Ele castiga as pessoas a quem ama. Mas o diabo me leve se Ele não escolheu maneiras estranhas de demonstrar amor."

"Eu só me lembrava, então, de como meu pai costumava dizer que a verdadeira razão de se viver era preparar-se para ficar morto durante muito tempo. E quando eu descobria que tinha de olhar para eles, dia após dia, cada um, mulher e homem, com seus segredos e egoismos, o sangue de um alheio ao sangue de outro e diferente do  meu; e pensava que aquela seria a única maneira de eu me preparar para morrer, eu  odiava, então, meu pai por haver me concebido".

"Quando ele nasceu, compreendi que a palavra maternidade foi inventada por alguém que precisava de uma palavra para justificar-se, pois os que têm filhos não se preocupam em arranjar palavra para isso. Eu soube que apalavra medo foi inventada por alguém que nunca teve medo; orgulho, por alguém que jamais teve orgulho. Compreendi, então, que a culpa não era de seus narizes sujos, mas de termos de trocar palavras que, como aranhas, pendiam das bocas, por um fio, oscilantes, sem nunca se tocarem; e que, somente por meio de golpes de chicote, meu sangue e o sangue deles poderiam fluir num fluxo único. Compreendi que minha solidão em verdade nunca fora violada, até que Cash chegou. Nem mesmo por Anse, à noite"

"(...) pensei como as palavras sobem retas, numa linha tênue, rápida, inofensiva, enquanto as ações rastejam, pegadas à terra, de forma que, decorrido algum tempo, as duas linhas se distanciam tanto que uma pessoa não pode mais abrangê-las com as pernas; e que o pecado, o amor e o medo não passam de sons que as pessoas que nunca pecaram, amaram ou temerem, empregam para denominar o que nunca sentiram e não poderiam sentir, até que viessem a esquecer as palavras. Como Cora, que nem mesmo aprendeu a cozinhar."

"Meu pai disse que a razão para se viver é preparar-se para ficar morto. Eu sabia, finalmente, o que ele queria dizer, e sabia, também, que ele não poderia ter sabido o que isto significava, porque um homem não entende de limpeza da casa no devido tempo. "

"Certo dia, comecei a conversar com Cora. Ela rezou por mim, poprque me julgava cega em relação ao pecado. Queria que eu me ajoelhasse e rezasse também, porque, para as pessoas que julgam o pecado apenas questão de palavras, a salvação também não passa de uma palavra."

"Às vezes eu me pergunto se alguém tem o direito de dizer se um homem está maluco ou não. Às vezes eu penso que nenhum de nós é inteiramente louco ou inteiramente são, até que a maioria nos identifica de uma ou de outra maneira. Não importa muito a maneira como um homem age, e sim a maneira como a maioria das pessoas olha-o enquanto ele age."