segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Simão, o gaveteiro - Por Lúcio Packter

"Criança geopolitica observando o nascimento do homem novo" - Dali 1943
"Simão tornou-se gaveteiro depois que seu tio Joaquim, o gaveteiro, morreu enquanto encaixava algumas gavetas pesadas em uma cômoda com enorme tampo plano. Simão tem uma concepção política do mundo na qual uma grande cômoda, instalada na parte de baixo de um imenso armário, tem suas gavetas abertas ou fechadas conforme disponibilidades que nunca podem ser compreendidas por inteiro. Isso, para ele, é diferente das prateleiras com gavetas da Ciência, que confortam e prometem a Simão um mundo que ele compreende, mundo em forma de gaveta, com seus puxadores, pregos, tintas, madeiras, formas. Para Simão, nada pode ser mais seguro do que uma gaveta, nem mais correto, exato, sereno. No início, era uma gaveta. Depois surgiram os gaveteiros. Os planetas, o universo, se bem interpretados, seriam gavetas estilizadas. Quem poderia discordar de Simão ao mirar as estrelas da janela de sua casa, que na verdade são gavetas em formato? E, aliás, pense se existe qualquer coisa no mundo que não tenha a forma ou que não caiba em uma gaveta. Nossos pensamentos funcionam como gavetas que se abrem e fecham. Não quer ir à praia? Fechou uma gaveta. Foi ao cinema? Abriu outra. O próprio cinema é uma enorme gaveta: a tela, as poltronas, o corredor que leva à sala, o saquinho de pipoca. A própria pipoca com reentrâncias, é uma gavetinha. O mundo, segundo Simão, e só não vê quem não quer, é uma gaveta em toda a abrangência do tema."
Texto extraído da reportagem "Neurônios pensam", escrito por Lúcio Packter na revista Filosofia, nº 56, p. 54.  O autor é Fiolósofo Clínico, criador a Filosofia Clínica.